O Ponto Zero
Mude tudo o que você viu até agora. Porque agora não é nada. Somos moscas presas numa teia de acontecimentos que ninguém sabe se é real ou não. Onde nada é real, existe somente o aceitável.
Abri a porta depois de uma noite de bebedeira. Não sabia mais onde estava. Os carros que estacionavam na frente da minha casa se foram, e no lugar apareceram cabines estranhas pintadas de cinza, com um símbolo de uma meia pessoa, e escrito “Hypermobl”. Pessoas entravam nessas cabines e não saíam mais. Menos de dois minutos de espera, outra pessoa entra na mesma cabine, que está assustadoramente vazia. A mesma cena se repete.
Fecho a porta da rua e volto para dentro de casa. Tudo está como deveria estar. A velha TV colorida com um controle remoto enorme, um aparelho de vídeo cassete novinho e um sofá de couro que me custou uma fortuna. A cabeça dói. Algo naquilo tudo não fazia sentido. Corri para a cozinha e peguei o jornal do dia, e vi que não havia nada escrito. As letras, antes tão vívidas, sumiram, deixando somente um jornal de folhas limpas, sem fotos, sem anúncios, sem números. Havia sim, somente um símbolo no final do jornal, um espécie de semicírculo maior em cima e um semicírculo menor embaixo.
Um barulho enorme se fez ouvir na porta. Alguém batia com voracidade. Esperei os ecos das batidas pararem para conseguir me arrastar até a entrada. Ainda estava de bermuda e sem camisa.
Quando abri a porta, uma pessoa que me pareceu totalmente ridícula olhava para mim. Tinha somente uma lente de óculos, era careca, usava uma roupa branca impecável. Parecia um ator de comercial de sabão em pó.
- Pó? – disse ele.
- O que?
- Sabão em pó? – ele repetiu.
Balancei a cabeça, sem entender nada. Ele parecia determinadamente confuso, e eu estava pior do que antes.
- Não estou confuso. Sei o que é sabão em pó.
Dito isso, continuou parado, me encarando. Sorri na melhor das intenções. Bom pra você, pensei.
- Não tenho tempo para seu sarcasmo. Aliás, não temos tempo para nada. Venha comigo agora.
Aí sim a cabeça começou a mostrar sinais de uma enxaqueca que não iria parar tão cedo. Como assim, ir com ele, assim, do nada? Eu sequer sabia seu nome, o que ele era.
- Não precisamos de nome. Não precisamos de nada mais do que temos aqui. Venha. – Insistiu.
- Tá. “Venha” para onde, como e pra que? – eu perguntei. – Eu não sei o que aconteceu ontem, mas acho que o que eu usei estava realmente forte, ou senão isso é um trote, e vai aparecer um monte de câmeras me filmando, então corta isso tudo e me deixe dormir.
- Parece que você não me entendeu. – disse o homem, entrando na casa. – Você precisa vir comigo agora. – dito isso, aproximou-se de mim e encostou seu indicador na minha mão direita. Uma pequena agulhada se fez sentir. Minha cabeça parou de doer na hora. Mas ainda continuava confuso.
O homem de branco pegou então meu braço e me empurrou para fora de casa, com uma força e determinação estranha, e nem minhas tentativas de recuar foram suficientes perante ele. Estava fora de casa, perto das cabines, só de bermuda e sem camisa, com uma pessoa totalmente diferente me empurrando. As pessoas na calçada pararam para olhar. Só aí eu reparei.
As pessoas que entravam nas cabines eram mais estranhas que o rapaz de branco. Elas pareciam sem perspectiva alguma de vida. Andavam a esmo, com papéis na mão, que pareciam mapas. Entravam nas cabines “hypermobl” e sumiam. Quando pararam para ver o que estava acontecendo, era como se o apocalipse estivesse chegando. Seus rostos tomaram a expressão de terror e gritos foram ouvidos em algumas partes. O homem de branco pôs a mão na testa e um tudo ficou parado. As pessoas pararam, com seus rostos aterrorizados, olhando para nós. Até o brilho da cabine hypermobl parou. Tudo parou. O tempo.
Ele me segurou pelo braço de novo, me arrastando pela rua até a esquina. Lá ele acenou estranhamente com o dedo indicador sobre o pomo-de-adão, e algumas pessoas que estavam paradas começaram a se mover. Elas estavam vestidas como ele, de branco impecável.
Antes que eu pudesse dizer alguma coisa, fui cercado por eles e uma luz surgiu sobre nós. Fiquei cego momentaneamente, até que a luz se foi. Quando meus olhos se acostumaram de novo com a claridade normal, vi que estava numa sala verde. Totalmente pintada de verde. Era como se a pessoa que morasse ali tivesse uma obsessão pelo verde e quis pintar tudo de verde: a porta, a mesa, a cadeira. Só eu ali dentro, parado, embasbacado.
Sente-se, disse uma voz atrás de mim. Não vi ninguém. Procurei algum auto falante ou algo assim, mas não achei. A voz mandou-me sentar de novo.
Demorei até atender ao pedido da voz, mas sentei. Aquele lugar não tinha cheiro, não tinha som além da voz, e da minha respiração. Nada mais era passível de ser sentido.
- Sabe onde está? – perguntou a voz.
Dei de ombros. Desde a hora que acordei eu vinha fazendo a mesma pergunta.
- Não sei, não sei de nada do que está acontecendo. – respondi.
- Do que se lembra? – perguntou a voz
Procurei repassar o que tinha acontecido ontem. Fui a uma festa na casa de uns amigos meus, mas a casa deles estava uma zona total, e fomos todos lá pra casa. Uma amiga minha tinha ido também, apareceu de última hora. Ela era linda, e eu a paquerava há tempos. Mas não tinha coragem para falar com ela. Nos olhávamos, ríamos, mas ficava só nisso. Aí eu comecei a beber, ela também, como todo mundo, e ela me deu um beijo no rosto, disse que estava esperando. O que, eu não sei. Depois bebi mais, meus amigos caíram por cima dos outros e todos foram embora. Dormi no sofá.
- Poucas coisas, da festa de ontem...
- Festa? – perguntou a voz.
- Sim.
- Seja mais específico.
- Uma festa, uma reunião de amigos, nos encontramos para beber cerveja e falar bobagens...
- Lembra do nome dos seus amigos?
- Claro que lembro! – Respondi com sarcasmo.
- Me diga. – desafiou a voz.
Eu não diria nada àquela voz, ainda mais porque eu não estava vendo o dono dela em lugar algum. Mas mesmo assim, ao tentar lembrar o nome dos meus amigos, a dor de cabeça voltara, e eu não conseguia lembrar. Não lembrava de seus nomes, de seus rostos, de suas vozes, só o que tinha acontecido. Até a menina que eu era apaixonado eu esquecera o nome. Mas não falaria isso com a voz.
- Eu não. Eu não te conheço. Ninguém me respondeu nada até agora.
- Você não se lembra deles. – Definiu a voz.
Lembrei que a mesma pessoa de branco, que tinha aparecido na porta da minha casa mais cedo também tinha conseguido ler meus pensamentos.
- Ok, você. Eu estou aqui há dois minutos, acordei tem meia hora, e já to perdido. O que está acontecendo aqui?
- Você sabe onde está?
- Estou numa sala, conversando com uma voz vinda não sei de onde! – gritei.
- olhe em volta de novo. – me respondeu.
Olhei para as paredes e o que vi me causou espanto. Eu poderia jurar que a sala era totalmente verde. Agora ela era diferente, parecida como um corredor de hospital, largo, pintado de branco. Havia uma porta de cada lado, sem janelas nos corredores.
Levantei da cadeira assustado e vi que a cadeira não existia mais.
- O que é isso? – gritei.
- “isso”, é sua mente tentando achar onde você está.
- E onde eu estou?
- No ponto-zero.
Aquilo caiu como uma bomba. Eu tinha uma teoria que as algumas coisas às vezes ficam perdidas no tempo. Como as chaves do carro, que você procura por todo lado para achar justamente onde você tinha colocado antes. Mas você jura que a chave não estava ali. Tudo podia ir para o ponto-zero, segundo minha teoria. A vida continuaria, mas nós ficaríamos como que em animação suspensa, até sermos re-inseridos no mundo, e nosso ponto-zero acabava. Meus amigos zombavam de mim o tempo todo, diziam que eu era louco e que tinha fumado demais.
- O que? – perguntei, dando uns passos pelo corredor. Aquele lugar me parecia familiar.
- Você está no ponto-zero. O lugar fora do tempo normal. O semicírculo, lembra?
O símbolo no jornal. O semi círculo maior em cima e o menor embaixo.
- O que isso significa?
- Significa que, mesmo que uma parte da vida esteja continuando agora, outra parte dela, ou seja, você, está em animação suspensa.
Eu era o círculo menor. Eu estava fora do contexto, era eu no ponto-zero.
Olhei pra baixo tentando reorganizar as idéias. Algum nome, alguma pessoa, algum conhecido, meu pai, minha mãe, nada. Nada estava na minha mente. Só formas de corpos, e sombras de rostos. Nenhum conhecido.
- Você não está entendendo. Isso é normal. Precisa se acostumar com o que o cérebro não conhece, aí ele monta uma imagem pra você. Não é assim que funciona?
Essa teoria eu usava para explicar porque as pessoas não viam fantasmas, só vultos, e só ouviam sussurros. O cérebro não pode personificar uma coisa que ele não conhece, então ele manda uma imagem difusa aos nossos olhos na tentativa de nos fazer ver que alguma coisa está ali, mas não é necessariamente AQUILO que está perante nossos olhos. Como não reconhecemos a imagem, nosso corpo entra em alarme, e então nos assustamos.
Quando olhei pra cima para tentar falar, vi que tinha mudado de ambiente. Estava no meio da minha sala de estar, na casa da minha mãe. Ela estava pintada de marfim, como no dia que nos mudamos. As sancas de gesso pintadas de branco, a cerâmica grande. Mas nenhuma pessoa, nenhum móvel, nenhuma foto, nenhuma sujeira, som, cheiro, sensação. Nada.
- Até quando vou ficar aqui? – perguntei.
- Você está aqui porque precisa lembrar de alguma coisa de fora do ambiente que estava.
- Como assim?
- Seu ponto-zero aconteceu porque você acabou chegando a uma conclusão que alterou alguma percepção. Essa percepção do mundo que você tem só está assim porque você está se adaptando a sua descoberta.
- E isso é ruim?
- De certa forma, sim.
- Por quê?
- Vou lhe mostrar. – disse.
Pisquei e de repente estávamos numa rua movimentada. As pessoas andavam com roupas chiques e antigas, mas os carros eram modelos novos. As casas eram contemporâneas, mas as pessoas não usavam celulares, elas conversavam pressionando um ponto na frente da orelha. Até o modo de falar das pessoas era culto demais para o tempo. Mas havia aviões, helicópteros, e até as cabines hypermobl.
De repente, vi passar por mim, uma carroça com uma cadeia atrás dela. Dentro da cela, havia um punhado de pessoas, presas pelos pescoços por grossas correntes. O cavaleiro que conduzia a carroça estava trajando roupas da época de César, com direito a espada e escudo. Atrás da carroça, uma procissão de frades ocorria. Parecia um cortejo fúnebre, se não fosse um monte de mulheres acorrentadas que andavam atrás deles. Pelo que eu sabia, aquilo parecia uma inquisição.
Com tanta informação ao mesmo tempo, minha cabeça começou a doer. Porque mesmo que eu visse aquilo tudo, aquela riqueza de imagens e cores, de antigos e novos, não haviam rostos, não havia som, não havia cheiro, não sentia calor ou frio. Nada. Nada!
Olhei para trás e vi que a rua que eu estava não estava totalmente asfaltada. Os carros paravam antes do final do asfalto, os motoristas saíam e começavam a caminhar, e suas roupas eram como roupas de nômades, com peles de animais em volta do corpo e armas rudimentares.
Aquilo tudo provocou um enjôo repentino, e caí de joelhos. Pisquei repetidamente para tentar parar a dor de cabeça, mas senti um torpor tudo começou a rodar. Lembrei da menina que eu gostava me dizendo que estava esperando. Esperando o que?
- Isso é ...- sussurrei
- Isso é o que? – Disse a voz.
- Impossível.
- Impossível ou inaceitável?
Não entendi a pergunta. Eu já tinha ouvido isso uma vez, mas não me recordava quando, nem onde.
- O que não é real, é aceitável. – eu me ouvi falando.
- Exato.
- Mas aí já é demais. É uma cadeia de acontecimentos que não poderia coexistir no mesmo espaço de tempo.
- O ponto-zero é isso, ou pode ser encarado assim, se quiser.
Ainda não sabia o que eu tinha a ver com aquilo tudo. O que tinha a ver o homem de branco que me buscou em casa, o que tinha a ver a voz que estava o tempo todo comigo.
- Ainda tem coisas que eu não entendi. Quem é o homem de branco?
- O que você quis ver. – respondeu a voz.
- Eu não queria ver ninguém de branco.
- Quando você abriu a porta e viu as cabines, pensou que algo estava errado. Do lado de dentro da sua casa, você não reparou pequenos detalhes que te mostraram que o que estava se passando não era totalmente real. Quando viu o símbolo no jornal, achou que estava louco. Seu cérebro mandou a mensagem de uma pessoa que trabalha em um hospital e mandou o homem. Claro, seu cérebro não foi fiel a imagem de uma enfermeira, isso devido aos filmes de ficção científica que você assiste.
- E depois?
- Depois, o que aconteceu foi justamente o que você viu. As pessoas viram você e se assustaram, porque você não deveria estar ali.
- Porque não?
- Porque algumas partes do ponto-zero é uma realidade aceitável para outras pessoas que não tem o mesmo entendimento que você tem. A sua teoria provou ser algo não certo, mas aceitável.
Ainda me custava entender isso tudo. A teoria toda era, como ele mesmo dizia, teoria. Não havia modo de prová-la.
- Vou te dar algo para que você entenda a natureza disso tudo. – Disse a voz.
No final da rua, onde acabava o asfalto, apareceu uma figura. Parecia um vulto. Movia-se devagar e sem rumo, mas conforme fui olhando, seus movimentos tornaram-se coesos, sua silhueta foi-se aperfeiçoando, seu corpo estava em um terno preto risca-de-giz impecável, sapatos lustrados, mãos pequenas, sem anéis, uma camisa social branca sem gravata, um colar de prata por baixo da roupa. Estremeci ao pensar em como ia acabar aquilo. Aquela pessoa, que antes era somente um vulto, aproximou-se de mim, e meu espanto, minha dor de cabeça, meu enjôo, tudo o que eu sentira até agora voltou em ritmo alucinante. Aquela pessoa era exatamente como eu. Ele ERA eu.
- Ainda está difícil de entender? – disse ele.
Eu o olhava, boquiaberto. O jeito de falar, os trejeitos na voz, os olhos que pareciam estar sempre escondendo um tom sarcástico, as mãos nos bolsos, tudo me lembrava eu mesmo. Não conseguia achar uma palavra que definia aquilo tudo que estava acontecendo.
- Estou esperando. – disse. E sorriu sarcasticamente. Ele sabia que era isso que eu estava tentando lembrar desde o começo do dia, da frase dita pela menina que eu gostava... qual era o nome dela, mesmo? Qual era a cor do seu cabelo? Seu perfume?
- Isso que você está vendo é aceitável porque eu posso conviver no mesmo lugar que você. Porque eu e você não somos dois. Somos um.
- Como assim, “somos um”? eu estou vendo você! Você está fora de mim, está ocupando lugar no espaço.
- Que espaço? – ironizou, franzindo o cenho. – não há espaço aqui. Não há hora, não há pressa, não há tempo, não há sentidos. Você mesmo só está enxergando porque seu cérebro manda os impulsos eletromagnéticos para entender isso tudo.
Comecei a ter um pequeno vislumbre do que ele estava dizendo desde o começo. Eu dizia que na teoria do ponto zero, o tempo deixava de existir, e qual é o modo mais simples de se medir o tempo que passa? Pelos nossos sentidos, pelo que deixamos gravados em nossos sentidos, pelo perfume que sentimos em uma pessoa que gostamos, pelos rostos que vemos, pelo gosto das comidas, pela sensação de toque de alguém. Isso, involuntariamente, é uma medida de tempo. Andei para trás, até a vitrine de uma loja de chapéus. Toquei a vitrine e deixei minha mão ali por alguns segundos. Quando retirei a mão, não havia nada, digitais, marcas de suor nem nada que definisse minha passagem ali. A pessoa que se parecia comigo riu.
- Não há nada que possa fazer para marcar o tempo aqui, você não entende? “aqui” é caracterizado pela total falta de sentidos. Você está experimentando uma experiência onde seus sentidos são retirados para que você se guie única e exclusivamente pelo que seu cérebro manda a você.
Por isso as dores de cabeça. O cérebro trabalhava tão rápido na tentativa de formar paisagens inteiras, que chegava a doer.
- Isso é aceitável. – disse. – mas ainda há coisas que eu não entendo. Como eu posso ter um vislumbre tão perfeito de você, se você sou eu? Não deveria haver algumas peculiaridades que eu criaria para mim mesmo?
- Mas há uma peculiaridade. – disse o outro. Aproximou-se de mim, bem perto do meu rosto, com uma sobrancelha arqueada. – consegue lembrar seu nome?
Fui pego de surpresa. O desespero foi tomando conta de mim, enquanto tentava montar na minha cabeça o meu nome. Dezenas de letras apareceram na minha frente, senhas que eu usava em messengers, sites de rede social, contas de banco, números aleatórios, tudo. Até o número da minha antiga casa apareceu na minha cabeça, gravada na placa azul com bordas brancas, que eu cansava de olhar. Mas não lembrei meu nome. Desabei pesadamente, com aquela figura parecida comigo me encarando, tirando sarro da minha cara, como se tivesse contado uma piada de duplo sentido.
- Você não se lembra porque isso é uma coisa que seu cérebro estava acostumado a fazer. Se te perguntassem seu nome no mundo real, você dizia instintivamente. Era assim, ele estava gravado a ferro e fogo na sua cabeça. Mas agora, aqui, é um mundo novo que seu cérebro tenta criar para você. Ele não tem tempo para trivialidades. Não tem tempo para a menina que você gosta e não consegue falar com ela, não tem tempo para seus amigos, não tem tempo para seu nome. Você é você, e para ele, basta você estar vivo. Agora venha, levante-se.
Ele me ajudou a levantar. Pediu para que eu respirasse fundo e tomasse o controle da situação. Mas que situação eu deveria ter controle? Eu estava num lugar completamente fora da realidade, uma teoria criada por mim, e agora eu não conseguia mais saber os fundamentos, as regras desse mundo teórico, e ainda tinha minhas memórias bloqueadas por mim mesmo para que eu não enlouquecesse, não caísse no vazio... como um relâmpago, as coisas começaram a fazer sentido por um segundo, depois vi que, se conseguisse manter o controle, juntaria todas as peças do quebra-cabeça e saberia o porquê daquilo tudo.
- Vazio. – Disse.
- Como? – Perguntou a minha cópia.
- Eu estou no vazio. Meu cérebro manda isso tudo para mim para que eu simplesmente não navegue no vazio, não caia em lugar algum, por isso ele reconstrói todo o cenário, por isso ele não tem tempo de me fazer sentir cheiros ou temperaturas.
Ele riu e aplaudiu. Do jeito que eu me conhecia, ele estava feliz por ver que ele não precisaria explicar tudo.
- Você começou a entender o lugar. Agora, vamos começar a entender o tempo.
Colocou a mão no meu ombro e um lampejo de luz me levou embora dali. Paramos no meio do nada, como que levitando, num cenário de fundo negro.
- Agora, vamos ver se está tudo certo. Reconstrua sua casa daqui.
A cabeça doeu de novo. Reconstruir uma casa era uma tarefa simples quando somos perguntados por alguém que conversamos em um bar. Esquecemos alguns detalhes, mas enfim, nos damos por satisfeitos por explicar a pessoa como é a nossa casa. Agora, recriar a casa toda, nos mínimos detalhes, seria complicado.
- Nada é complicado ou impossível. Tudo é aceitável. – disse o outro.
Respirei fundo. Não seria fácil mas eu teria que tentar. Fechei os olhos. Lentamente os abri de novo. Vi surgindo uma parede branca. Ela cresceu até chegar a um ponto acima de mim. Depois se expandiu para os lados, e para cima e para baixo, até formar um cubo. Uma porta foi sendo desenhada no canto esquerdo do cubo, uma passagem escura se abriu na parede transversal. Um corredor apareceu ali. Na parede em frente à porta, vi aparecer uma janela. O chão começou a tomar uma cor de chumbo, e marcas foram aparecendo, dividindo a sala toda em quadrados de mesmo tamanho. Dentro em breve, apareceu a minha sala.
- Isso é fácil. – disse ele. – Agora, você consegue reconstruir tudo o que tinha na sala?
Parei para pensar. Isso é fácil, eu vivia nessa sala. Empurrei um pouco a pessoa que se parecia comigo até o canto da sala. Fechei os olhos. Consegui visualizar cada objeto que estava na sala. O rack com a TV, o aparelho de som, as miniaturas de carros, um porta-cds de lado esquerdo do rack e um armário do outro lado. Uma mesa de centro, com um vaso branco, uma caixa de madeira com controles para a TV e o aparelho de som. Vi aparecer as poltronas em estilo colonial, duas de um lugar e uma, no centro, de dois lugares. A mesa de jantar redonda apareceu no canto, ao lado da porta, com 2 pares de cadeiras. A persiana da janela da sala apareceu aberta, como sempre deixava.
- Abra os olhos. – Disse a outra pessoa.
Abri o olhos e vi minha sala do jeito que eu tinha imaginado. Só que estava tudo de ponta-cabeça. Os móveis estavam todos presos no teto. A pessoa que se parecia comigo começou a rir. Imaginava o que eu tinha feito de errado.
- Você não fez nada de errado, exceto uma coisa. – falou.
Apontou para a testa, como que indicando seu cérebro. – Seu cérebro sabe exatamente onde estão suas coisas. Na verdade, se você fechar os olhos, vai conseguir andar pela sua casa sem esbarrar em nenhum objeto.
- E então? – perguntei.
- Então que onde você está não existe lugar certo para nada. Você está no ponto-zero, onde o mundo está parado aqui e lá fora ele continua no seu ritmo normal. Olhe bem a sua casa. Ela ainda não é assim, como você imaginou. Ainda estão faltando detalhes, que você deixou escapar.
Forcei a mente para lembrar onde foi que eu errei. Pouco a pouco lembrei. Os enfeites que eu tinha em cima do armário, os meus filmes, os meus CDs, o vaso de plantas em cima da mesa de jantar, as almofadas em cima das poltronas. Até as tomadas e os interruptores não apareceram.
- Você está tão acostumado a entrar na sua casa e sair dela que não notou pequenos detalhes. Esses detalhes fazem diferença? Alguns sim, outros não. Você precisa dos seus enfeites agora? Não. Você precisaria acender a luz mais tarde? Sim.
- Ainda não entendi muita coisa.
- Sei que não entendeu, mas isso é teoria sua. Eu estou lhe mostrando o que está acontecendo perante seu ponto de vista, mas você esqueceu tudo o que pode acontecer no lugar que você teorizou. Quando você começou a pensar nisso, no que pode ser ou não ser, você chegou a uma conclusão que lhe trouxe até aqui. Para provar sua teoria. Ela está esperando, não está?
Um relâmpago de memória passou pela minha cabeça. Foi a primeira sensação que eu tive desde que estava ali. Senti a respiração daquela menina, a menina linda que eu estava apaixonado, dizendo no meu ouvido que estava esperando.
- Eu estou esperando. – disse ela. E de repente, lá estava eu. Com uma cópia de mim mesmo, no meu apartamento de ponta-cabeça, num lugar onde eu não sentia nada, e onde passado e presente colidiam...
Passado e presente. Esperando. Ela está esperando, ela disse. Esperar, tempo. O tempo não existe e ali nada marca o tempo. Mas ela está esperando. Passado e presente. Ela está esperando o futuro, alguma reação minha, algo que eu deveria fazer. Futuro. Tempo. Estremeci e vi tudo rodar. O rack com a TV foi lançado pela janela, rumo ao vazio. As poltronas caíram e despedaçara contra a cerâmica escura. A mesa de centro levitou e parou em pleno ar.
Lembrei de algo do passado. Deveria ser passado, porque aconteceu já havia algum tempo. A parte que eu abri a porta e vi a cabine hypermobl. Quando entrei e vi o vídeo cassete novinho. O jornal sem letras, a não ser o símbolo dos semi círculos. O homem de branco. O homem de branco tinha rosto, tinha olhos, e eu me lembrava deles. Eles olhavam para mim, como que me examinando minuciosamente, e ele lia meus pensamentos, tal qual a minha cópia ali fazia. Lembrei das pessoas assustadas na rua, sem noção do que fazer, seguindo ordens, gritando quando me viram. As outras pessoas que me cercaram e me levaram para a sala verde.
- Passado, presente e futuro. – Disse.
- Como?
- O tempo não existe no ponto-zero. Mas ele existiu. O passado aconteceu até agora há pouco, e acontece continuamente. Ele sempre vai continuar. Não pode parar.
- E daí? – Disse o rapaz.
- E daí...- lembrei de todas as minhas teorias absurdas, e uma que eu comentei na mesa, com meus amigos.
- Daí que seria impossível, se morrermos, viajarmos no tempo para ver, rever ou reviver coisas passadas, porque isso alteraria não o curso da terra em si, mas alteraria toda a estrutura do ponto-zero. Seria como voltar um disco para trás e apagar tudo o que está gravado. Passado, presente e futuro colidiriam no ponto-zero, criando uma onda magnética insuportável, e isso seria terrível, pois vocês não conseguiriam viver com as lembranças.
O rosto da pessoa que se parecia comigo mudou. Ele deu um passo para trás.
- Se eu morresse no presente e revivesse o passado, eu apagaria da existência muitas coisas que eu fiz de errado, faria tudo diferente, e talvez o meu ponto-zero não existiria. É por isso que eu estava naquela casa no começo do dia. Aquilo era meu ponto-zero. O que eu estaria vivendo se eu revivesse o meu passado e mudasse as coisas.
A pessoa estava sem rosto. Mesmo assim, ele parecia confiante, como se soubesse onde eu queria chegar. Vi o corredor transformando-se. Vi meu espelho no final dele, as portas no final, a direita e a esquerda surgiram. A sala foi refazendo-se lentamente, mas de outro modo totalmente diferente. Ela ampliara-se de uma forma monstruosa, não conseguia enxergar nada além da mesa de centro que levitava. Levantei, e estava vestido não de bermuda e sem camisa, mas com calças jeans, minha bota, uma camisa branca e jaqueta. Cabelos penteados para trás, cortados bem rente.
- Agora eu sei, e sei que é verdade. Podemos sim ver o passado e o futuro no ponto-zero. Mas não o presente. Porque o presente está acontecendo comigo, e eu não sei o que está acontecendo no mundo real porque eu estou aqui perdendo tempo com você.
- Ela está esperando. – disse o homem, que outrora parecia-se comigo.
- Sim, ela está esperando. Ela está esperando o momento que eu provasse a teoria e voltasse no tempo, dissesse a ela desde o começo, quando ficamos a sós, que eu a queria, o quanto eu me importava com ela. Mas eu não sabia como fazer isso. Não sabia por que era teoria. Ainda não sei como vim parar aqui, mas sei que por mais que ela espere pelo momento que eu mude o passado, isso não vai acontecer. Não vai acontecer porque senão eu não sentiria nada. Não sentiria a emoção dos seus abraços, o sabor dos seus beijos ou o toque de suas mãos. Ela está esperando o futuro, quando eu terei que tomar coragem para falar com ela que eu a amo. E eu direi isso a ela no futuro. Não no passado.
Toda a sala começou a desmoronar. Tudo começou a ser lançado no vazio e o homem de terno tomou novamente meu rosto. Ele estava parado ali, perto da mesa de jantar, que acabou sendo arremessada contra o vazio. Senti a força que estava sugando tudo para longe, mas ele continuava impassível, olhando para mim.
Comecei a perder minha força e fui caindo no vazio, tentando me segurar em alguma coisa. Mas não havia nada para me segurar. Vi eu mesmo sorrindo, mãos nos bolsos da calça, parado. A porta da sala abriu-se, e vi o homem de branco passando por ela. Ele me olhou confiante, e disse:
- Não se preocupe. Ela está esperando, estão todos lá, te esperando.
Dito isso, perdi totalmente minhas forças e caí no vazio, sendo arremessado para baixo até não conseguir ver a minha sala, nem nada. Durante a queda, meu corpo foi sendo tomado de um torpor incrível, e comecei a adormecer.
- Eu estou esperando. – disse-me ela.
Meus amigos estavam aos berros na sala, e eu estava na porta da cozinha, com ela na minha frente. Era o momento certo para tomá-la em meus braços e beijá-la. Mas não o fiz. Sorri envergonhadamente, como sempre fiz. Nos abraçamos como bons amigos, e eu me despedi dela. Ainda vi seu rosto quando ela saiu. Nossa, ela era linda. E a cada dia, ela tornava-se mais linda ainda. Quando a perdi de vista, corri até a sala, para ver, pela janela, seu carro partindo. Todos os meus amigos olhavam pra mim, em silêncio. Sabiam que eu tinha perdido a oportunidade, de novo. Eles começaram a rir e fazer piadas da minha cara. Eu sorri, tentando esconder minha raiva. Mas algo de estranho aconteceu.
Do corredor, surgiu uma figura de branco, que segurou meus braços. Meus amigos pararam de rir e me olharam assustados. Tentei gritar por socorro mas algo na minha garganta me impediu de falar. Ouvi gritos e pessoas chorando. Varias pessoas de branco entraram na sala e me seguraram.
Quando tentei gritar, vi que estava totalmente sem forças. A pessoa que me segurava os braços parecia familiar. Era a mesma pessoa que me abordou no ponto-zero. Ele parecia diferente, preocupado. Tirou uma lanterninha do bolso e passou pelos meus olhos, me perguntava se eu estava bem, mas eu não conseguia responder. Fez um sinal afirmativo para a enfermeira que aplicou algo em meu braço, e subitamente parei de lutar. Meus amigos sumiram. A minha casa também. Na minha frente, só o rosto do homem de branco me olhando pacificamente.
- Calma. – Estão todos aqui. Vai ficar tudo bem.
E adormeci.
Abri os olhos com dificuldade. Meu corpo inteiro doía. Não conseguia enxergar nada além de silhuetas na minha frente. Pisquei um pouco pra tentar me acostumar com a claridade. Lentamente, as pessoas foram aparecendo, todas sem rosto. Pensei em me desesperar. Será que eu ia começar tudo de novo?
- Calma, cara. – Disse uma voz. Ela era conhecida. O dono da voz aproximou-se e vi meu irmão ao meu lado. Seu rosto mostrava uma riqueza de detalhes espantosa. Talvez fosse pelo tempo que eu passei vendo pessoas sem rosto.
Minha mãe passava a mão na minha testa, e ao fundo estavam todos os meus amigos. Todos comemoravam do jeito de sempre: muita gritaria, uns puxavam meu pé, outros me xingavam.
Olhei para os lados e tentei me levantar. Uma pessoa me segurou. Era o homem de branco.
- Não pode se levantar ainda. Experimente por enquanto só levantar essa parte da cama. – e acertou a parte de cima da cama, a ponto de eu ficar sentado.
Olhei para minha mãe e vi todos os detalhes de seu rosto. Ela chorava e alisava meus cabelos.
- Por que isso tudo, gente? – perguntei, balbuciando.
- Ué, você não sabe? – disse um dos meus amigos. – Você encheu a cara de rum e disse que ia sair pra dizer a ela que a amava, mas bateu com o carro de frente a um caminhão parado. Isso que é ser ruim de volante, bater num caminhão parado, gente! – E todos os meus amigos riram, gritaram, e minha mãe mostrou uma certa raiva por ver a festa de todos.
- Você quase morreu, seu besta. – disse ela. – Vê só que idéia idiota?!
- Mas ele é assim mesmo, Helena. Sai desembestado, desensofrido, como se o mundo fosse acabar.
Olhei ao fundo e vi minha amiga. Nossa, como eu senti falta da voz dela. Ela veio fingindo me dar um tapa, mas ao invés disso, me deu um beijo na testa. Depois sim ela me deu um tapa.
Comecei a olhar para os cantos, como que procurando alguém. Faltava alguém naquilo tudo, sabia que faltava. Vi meus dois irmãos, minha mãe, meus amigos do trabalho rindo da minha cara, mas ainda faltava alguém.
- Doutor... – disse. – Está faltando alguém...
Todos se entreolharam.
- sabe o que é, é que o quarto tava cheio e... – disse um dos meus amigos.
- E agora é hora de esvaziar o quarto, disse a minha amiga, empurrando todo mundo pra fora. – sai todo mundo, eu vou bater em vocês, viu, cambada de doido!
A gritaria foi continuar lá fora, com todo mundo dizendo que depois conversava comigo, dizendo que amava a minha amiga, ela xingando todo mundo, rindo, o de sempre. Minha mãe e meus irmãos também saíram. O quarto ficou vazio. O médico olhou para mim com cara de alívio.
- Que negócio é esse de sabão em pó? – ele perguntou.
- O que?
- Você disse isso, quando chegou aqui na ambulância. Você olhou para mim e disse: Sabão em pó.
Não soube responder nada, e quando ia começar a falar, a porta se abriu.
- Eu estava esperando.
Pensei que fosse desmaiar ao ouvir isso. Olhei para a porta e a vi. Ela estava mais linda ainda. Seu sorriso fez meu coração pular de alegria. Seus olhos estavam vermelhos, talvez tivesse chorado um tanto. Ela se aproximou devagar olhando para mim e me abraçou. Senti o seu cheiro, senti o seu toque, seu calor, tudo o que eu não estava sentindo há anos.
- Eu... – disse, apertando seu corpo contra o meu.
Não conseguia falar, queria ficar ali para sempre.
- Senti saudades. – consegui terminar.
Ela riu. Disse que também sentira saudades. Me olhou carinhosamente.
O médico deu umas recomendações e saiu devagar. Ficamos sozinhos no quarto.
- O que te deu, Paulo?
Parei por um momento. Meu nome. Nem isso eu lembrava.
- Eu... precisava dizer, precisava dizer a você... – balbuciava, - que não precisa esperar mais.
- O que? – Disse ela.
- Não precisa esperar mais, porque não há mais o que esperar. Não temos mais o que esperar. Eu sou louco por você há muito tempo. Quero ficar com você, porque eu não sei se conseguiria ficar com mais ninguém além de você. Desculpe por todas as vezes que eu tive a chance de dizer isso, mas é que eu ficava com vergonha, você sabe...
- Eu sei. – Ela disse, e riu. Os olhos vermelhos.
- Quero a oportunidade de te fazer feliz, para te fazer parar de esperar por tudo. Porque eu amo você.
Não conseguia mais falar nada. Nem ela. Passou a mão nos meus cabelos, eu toquei seu rosto. Foi o melhor silencio do mundo.
- Só que eu vou ter que esperar um pouco mais. – disse ela.
- Como assim, porque? – eu disse.
- Porque você está num hospital, aqui fica difícil.
Eu ri. Ela estava certa.
- Mas depois conversamos mais.
- Sim – ela disse – depois conversamos.
E foi saindo do quarto lentamente. Depois que saiu, tentei me acomodar na cama. Estava me sentindo cansado. A enfermeira entrou, arrumou a cama e saiu. E então o médico voltou. Fez algumas perguntas e disse que eu teria alta em breve.
Foi aí que eu notei uma coisa. Por um instante, notei que ele tinha alguma coisa dentro do bolso. Parecia um crachá do hospital, porque era todo branco. Mas a figura gravada nele me fez ter um sobressalto. Naquele crachá havia um símbolo, insignificante, de dois semi-círculos, um grande em cima, e um semi-círculo pequeno embaixo.
Olhei para ele, enquanto ele saía olhando para mim, vi-o fechando a porta devagar, vendo a minha cara de espanto. Depois disso, o remédio que a enfermeira colocou no soro fez efeito e fui perdendo os sentidos, pouco a pouco, até dormir.