Henrique se suicidou
Pela manhã eu corri. Eu não corri com os pés. Eu corri com os olhos, com as mãos, acelerado de preocupação, medo, ansiedade… Não tem nenhum sentimento positivo nessa correria, não é? Não importa se eu tento dar passos vagarosos (e até ando devagar às vezes), minha mente continua um córrego. Como um pequeno riacho, um filete de água ligeiro que vai lentamente se alargando, como se anunciasse uma enchente que eu tenho certeza: vai ficar maior daqui pro meio-dia. E vai levando tudo…
Pois bem, pela manhã eu corri. Soube de uma notícia: matou-se um tal de Henrique. Eu não sei quem é. Nunca o vi. Se eu o tivesse visto, mudaria alguma coisa? Claro. Eu teria os pedaços desse Henrique, e os pedaços dele morreriam em mim. Mas eu não sei quem é, não tenho nada desse estranho. Matou-se Henrique pela madrugada. Ramon amanheceu em desabalada carreira.
Pus o pé no ônibus e de novo e tive o clássico sentimento daqueles que estão no mundo só para completar o contingente de seres cenográficos esquecidos, porém ilhados em subjetividade: minhas vísceras falaram comigo. Aquela coisa angustiante, como se alguém fosse pago para te lembrar todo dia que você existe. Basta isso. Elas me fizeram lembrar que eu estou preso atrás dos meus olhos, dentro das minhas mãos, dentro da minha cabeça. Então eu lembro do Henrique. O que será que deu nele para ele se suicidar? Ouvi dizer que foi um desastre amoroso. Amor! Ainda se matam por amor, meu Deus! (sou agnóstico). Mas quem sou eu pra julgar como o Henrique ama. Quem quer abarcar o conceito de amor e dizer que ninguém pode se suicidar por causa de um amor, pois o amor é só alegria, equilíbrio, perfeição, harmonia? Para mim amor é viver, viver é fazer matéria para o pensamento. Pensar não é viver, é entender. E sozinhos sabemos o que vivemos. Só o Henrique sabia do seu amor e da sua vida. Que amor foi esse, Henrique, que te fez perder a jóia da vida no meio do jogo? E enquanto o ônibus sacolejava por causa de um motorista também apressado como todos, pensava eu sobre o amor do Henrique.
“Henrique se suicidou”. Essas palavras agora não pareciam só mais letras impressas no jornaleco. Era como se o mundo estivesse girando normalmente, e então aparece um aviso, como um letreiro luminoso gigante no cosmos: HENRIQUE SE SUICIDOU. Pronto, acabou. O mundo parou, algo deu errado com o mundo inteiro. Uma engrenagem quebrou, o sistema entrou em colapso porque os seres humanos são programados para a vida, como qualquer entidade biológica que busca a vida, a evolução.
Mas isso foi só o que eu pensei. Para os outros, e para quem não sabia da notícia, Henrique não existe, e o mundo não parou para refletir. O motorista nem sonha com isso. O mundo dele não parou. Ele veio trabalhar, veio dirigir o ônibus como se tivesse que chegar de uma vez no terminal para que o horário dele bata naquele caderninho que os fiscais empunham, como se a vida dele dependesse daquilo. E por que o meu mundo vai parar também? Eu não tenho nada a ver com esse Henrique, o que ele pensa sobre o amor e o que ele faz com as outras pessoas, principalmente o seu objeto de amor! Tirou a própria vida porque a empregava no amor, que acabou, infelizmente em desastre.
E se eu estivesse na pele dele? Digo, se eu fosse ele, completamente ele, tão ele que não lembraria que eu fui eu um dia, e assim sofresse o que ele sofreu, será que eu me mataria? Inevitavelmente, pois foi isso que ele fez. Se eu fosse o Henrique… mas eu não estou sendo ele agora mesmo? Num universo paralelo, talvez. E desço do ônibus no terminal. Minha parte que foi Henrique se suicidou com ele. Acabei de me suicidar, mas o mundo não vai parar.