O mundo está meio errado
O MUNDO ESTÁ MEIO ERRADO
(crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 02.03.11)
Anda tão errado este nosso mundo que, afora os votos nulos e em branco, todos temos um projeto infalível para melhorá-lo. Metade de nós aponta soluções num sentido, a outra metade, em sentido diametralmente oposto. Ou seja: o mundo aparentemente se divide em duas metades.
Votos nulos e em branco são aquelas pessoas que não tiveram qualquer contato com o assunto, nunca ouviram falar absolutamente nada sobre ele e desconhecem totalmente do que ele trata. Quer dizer: são todas as pessoas que não dispuseram daquele valioso segundo (medida de tempo, um sessenta avos do minuto) para receber as informações básicas sobre o caso, para analisar profundamente a matéria, para tomar conhecimento dos argumentos favoráveis e contrários ao acontecido, para estudar todos os fundamentos teóricos da coisa, para refletir no silêncio sagrado do seu íntimo, para formar uma arraigada convicção de acordo com as evidências e com suas ideias e princípios e, por fim, para dar uma opinião abalizada, estruturada e rigorosamente inabalável, imutável e impermeável a considerações tanto alheias quanto do próprio raciocínio (as quais podem vir a mudar julgamentos em que críamos piamente). Não dispondo desse precioso segundo vizinho da eternidade, as pessoas não têm como se manifestar (votos em branco) ou, se o fazem, o farão apenas por espírito iconoclasta e anárquico, isentas de responsabilidade (os votos nulos).
O caso é que o mundo se divide numa quantidade de metades próxima do infinito. Para ficarmos apenas nos eixos cartesianos, temos a metade de cima e a de baixo, a metade da frente e a de trás, a metade da esquerda e a da direita. Cada qual leva a uma proposta, ou opinião, ou palpite, o que também ocorre com as metades de mundo às quais nos vinculamos por opção, dinheiro, posição social, raça, credo, orientação sexual, ideologia, time de futebol e por aí vai. O pecado é que geralmente ignoramos a visão de mundo embutida em cada uma dessas metade e nos perdemos em discussões estéreis porque fanáticas e intolerantes.
Por isso é que tanto proliferam os blogues do ciberespaço, os espaços para comentários nos sítios de notícias da Internet e as páginas de opinião dos leitores nos jornais: para que cada um de nós, democraticamente, possa ditar sua receita de salvação do mundo - mesmo que seja advogando o fim dos princípios democráticos.
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Amilcar Neves é escritor com oito livros de ficção publicados, diversos outros ainda inéditos, participação em 32 coletâneas e 44 premiações em concursos literários no Brasil e no exterior.
==> Em breve, "Se Te Castigo É Só Porque Eu Te Amo" (teatro) chegará às prateleiras das livrarias.