Cotidiano: o homem público e suas esquinas.

Dia desses, minha amiga Elaine me contou duas cenas que a impressionaram muito Ela estava numa sorveteria de iogurtes numa esquina badalada de Niterói. As duas coisas, sim, eu sei, parecem não combinar: sorveteria de iogurtes e esquina badalada. Mas é de fato o que acontece por lá, muitas pessoas transitando, comprando... E na esquina, bem na curva, tem uma barraca de flores. Belíssima se não fosse a logomarca gigante de uma operadora de cartão de crédito infectando o lugar. O cenário é fácil de desvendar e poderia fazer parte de muitas outras cidades, onde as pessoas transitam e compram.

E enquanto Elaine prosseguia tomando seu sorvete de iogurte - calmamente, repito: calmamente... Porque Elaine é uma das poucas pessoas “calmas” e risonhas que conheci nos últimos anos. Pra falar a verdade conheço poucas pessoas hoje que não saem de suas casas sem que comecem o dia berrando com o leiteiro, o sapateiro, o vendedor de bananas. E olha que essas profissões nem existem mais. São de um Rio Antigo. Mas eis que Elaine e o sorvete se derretiam com a paisagem da cidade quando uma loura fausto-fawcett, “louraça” como dizem os entendidos no assunto, entrou na sorveteria toda empinada, nariz em pé, bunda em pé, tudo em pé dentro de sua lycra apertada. Lá onde eu nasci, no Tirirical, diríamos, arrochada, “arrochadinha” com sotaque - que é pra ficar bonito. A louraça metida em suas roupas colantes de mulher gato pediu um sorvete por trás dos seus óculos escuros Ray-ban. Parecia irritada, impaciente com a demora de dois minutos do atendente: “que absurdo!” Olhou para o sorvete com cara de quem não lambeu e não gostou. E para o atendente com cara de “quem você pensa que é”, “veja com quem está falando”, “já se olhou no espelho hoje...” Esnobou a todos sem exceção e saiu apressada esvoaçando os cabelos, sorvete numa das mãos, na outra a chave de sua camionete 4X4 estacionada na esquina. Entrou “ropocoticamente” no seu possante e olhou mais uma vez com ar de desprezo ou botox (não sabemos) para a sorveteria.

Não sendo nativa, Elaine, é claro, estranhou. Tentou mudar de olhar e se fixou na barraca de flores, afinal uma das belas paisagens poéticas do cotidiano das cidades. Sempre achei que os floristas deveriam ser isentos de impostos já que traziam a alegria das cores e o perfume da vida em meio ao concreto bruto, em meio a tanta gente embrutecida. Mas o cartão de crédito acabou com o meu pensamento pueril.

Na cena descrita por minha amiga, a florista lançava espirros delicados de água nas flores... Tudo parecia belo e profundo até que um rapaz saiu de seu “corolla” e se aproximou da florista como se quisesse contar um segredo. Era um rapagão forte, músculos bem definidos, a silueta dizia o quanto ele tinha se esforçado para chegar àquela forma ou fôrma. E Elaine o observava enquanto terminava seu sorvete. E achou que ele parecia confuso, nervoso, roendo as unhas... Ele falou com a florista e depressa voltou para perto do carro, talvez lugar de segurança... A florista fez um conjunto de belas rosas vermelhas e se concentrava no arranjo com egípcios, aquelas pequenas e delicadas florzinhas brancas. Não tinha pressa qualquer. O rapaz deu uma volta ao redor do carro, assoviou uma musiquinha, olhou o crescimento dos bíceps e tríceps no espelho retrovisor... E quando a florista mal enlaçava o bouquet, ele novamente se aproximou e fez uma transação bem rápida: “passa pra cá.” Entregou o dinheiro também rapidamente e a florista mal teve tempo de aprimorar o laço que envolvia as rosas. “O cartão para escrever!” Gritou a florista. O rapaz já tinha corrido apressado para o outro lado da rua, já tinha aberto a porta do carro e jogado as flores no banco de trás em tempo recorde. “O cartão!” Gritava a florista. Ele acenou: “Esquece!” Sim, podemos nos consolar pensando: “Ah, talvez ele não soubesse escrever...” Simples.

Complexo, cheio de camadas. As cenas de Elaine também me interessaram e por isso resolvi registrá-las, não porque sejamos as duas Pollyannas pra lá dos trinta, mas porque somos humanas, somos seres humanos e seres humanos se preocupam com outros seres humanos, se interessam por outros seres humanos e se entristecem, ficam desconcertados, estarrecidos e até mesmo sofrem com outros seres humanos. Somos seres gregários, biologicamente, culturalmente e o isolamento, comprova o quanto o individualismo nos faz mal, muito mal. Assim como a pressa nos faz mal e como a fome de viver no shopping da adrenalina acelera não só o nosso bio-ritmo, mas também o nosso modo de viver as experiências, podendo até mesmo “apagá-las”, queimando etapas significativas de nossas vidas.

E parece mesmo que o consumo se tornou a mola mestra de toda essa histeria, assim como a peça chave e a paisagem mais bela. A nossa Garota de Ipanema só pensa em malhar e consumir albumina. E o corpo entra “nessa” montanha russa contraditória - entre o culto e a saúde - para virar objeto do desejo e do dejeto. O corpo é hoje explicitamente usado como fetiche, mercadoria. E olha que eu nem sou marxista. Mas me parece que Marx explica. Que Freud explica. Pois eles não só anteviram esse estado de coisas como também podem explicar o nosso tremendo mal estar, pelo menos explicam o meu e o de Elaine. E eu incluiria Baudelaire nessa lista de perplexos diante do novo mundo. Até porque os poetas conhecem muito do homem. E ser poético não exclui o ser político. Faço aqui esse parêntese (politicamente poético).

E se tudo é consumo e se tudo precisa ser consumido, devorado rapidamente, instantaneamente, o que nos sobra é a falta. Falta tempo, falta amor, falta alegria e falta porque se não estamos consumindo não estamos existindo e se não existimos não há tempo, não há amor, não há alegria. Talvez por isso o consumo de droga também tenha mudado e a juventude consuma cada vez mais o crack, pra ficar tudo cada vez mais rápido – e agressivo de preferência. Da mesma forma que desejam o mercado. E o consumo. E o mercado... Corpos abrutalhados e carros potentes que mascaram o nosso vazio e a nossa impotência diante da liquidez das relações. É preciso estar bombado, maquiado, botoxado, maquinificado, padronizado, fazer cara de mal, assustar os passantes com os símbolos da nova era. Antes falávamos até em “boa foda”, hoje é o “food se”, “eat me” e “fast”, please.

Poéticas e patéticas, eu e Elaine suspiramos ao pensar nas flores... Nós que não as recebemos por agora. E deu aquela nostalgia... Mas se hoje é uma vergonha comprar flores, se a pessoa se sente constrangida por fazer um elogio, por dar um abraço, por expressar um afeto que seja, o que esperar do amanhã? O florista será em breve como o leiteiro e o vendedor de bananas. E ainda gritarão com ele: “Saia do nosso caminho, precisamos passar com pressa com nossos carros e as nossas etiquetas!”

Diante dessas cenas cotidianas decidi não só escrever, mas decretar “pateticamente” que hoje será “o dia da flor”, como temos “o dia do abraço”, “o dia do beijo”, “ o dia do respeito”... Vou sair para "consumir" uma flor para mim mesma e também vou tirar um foto para guardar de lembrança, porque sei que ela não resistirá ao tempo fugaz. Comprarei uma para Elaine também em agradecimento pela nossa partilha e amizade, que é dessas coisas lentas... E vou torcer para que reencontremos na esquina da vida do futuro aquele ser humano bem humorado, demorado na sua existência, evoluindo com novas texturas e novos encantamentos.

Patrícia Porto

Patricia_Porto
Enviado por Patricia_Porto em 14/03/2011
Código do texto: T2847879
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