Guru amazonense

Siddartha Gautama era muito jovem quando conheceu a iluminação e se livrou do sofrimento, tornando-se então o Buddha, o Iluminado. Ele vagava pelo Vale dos Ganges, na Índia, procurando ensinar virtude aos desvirtuados quando conheceu cinco ascetas e decidiu passar a eles um pouco dos seus ensinamentos.

Desde então esses cinco monges, e milhares de outras pessoas que se encantaram com os ensinamentos de Buddha, divulgaram sua filosofia para o mundo inteiro. E considero como maior representante local do budismo o doutor Serafim Medina.

Doutor Medina é um oncologista que atende no centro de Manaus, num consultório que está longe de lembrar um santuário, mas pelo menos tem um pouco de incenso na sala de espera. Apenas o visitei duas vezes, mas foram duas visitas reveladoras. O doutor gosta de conversa e em poucos minutos, enquanto me consultava, revelou toda sua filosofia de vida.

De rosto sorridente, voz um pouco fanha e altura considerável, Doutor Medina disse que essa é uma profissão onde se vê muito sofrimento. Aliás, quem faz Medicina deve estar ciente de que encontrará muito sofrimento. Sofrimento em seus pacientes que, queira ou não, passa para você. Isso sem falar na dor. “Dor é uma coisa, sofrimento é outra, entende?” Segundo ele, dor é algo físico, enquanto sofrimento é mais transcendental.

Citando Vinícius de Moraes conclui: "a dor é inevitável, mas o sofrimento é opcional". A maior parte do sofrimento vem da frustração de não realizarmos nossos desejos ou de fazermos algo que nos arrependemos. Para acabar então com o sofrimento devemos disciplinar mais nossa personalidade.

Justamente aí, Doutor Medina confessa sua influência budista. A questão principal no budismo é justamente a disciplina, como a maioria das filosofias orientais da época. Melhor, a questão principal é a lucidez, a disciplina apenas é um meio de se chegar á lucidez. Chamam de nirvana aquele estado em que somos libertados do sofrimento e da samsara (o ciclo interminável de renascimentos) e de bohdi o estado de completa iluminação, justamente o mais almejado pelos monges.

Na realidade, não sei se essa influência é direta ou não. Além de sua fala, o símbolo da dharma (nome dado aos ensinamentos de Buhdda, mas que se tornou popular como emblema de uma empresa daquela série Lost) pendurado na parede ao lado de seu diploma sugere que sim. Mas, ele pode estar lá simplesmente porque nosso doutor é uma dessas pessoas que adora fazer compras nessas lojas orientais ou simplesmente um grande fã da série.

“O segredo é a disciplina”, prossegue meu interlocutor, “só com disciplina os médicos se tornarão menos arrogantes e mais dedicados. Mas tem que ser uma disciplina individual, sabe? Disciplinar nosso ego...” Concordo, doutor. “Eles deveriam ensinar um pouco dessas filosofias orientais na faculdade, para os futuros médicos, sabia? Feng shui, confuncionismo, zen-budismo, essas coisas. Elas te ensinam muito bem como ser alguém melhor consigo mesmo e com as outras pessoas...” Concordo novamente com o senhor, doutor.

“Você faz kung fu? Kung fu, artes marciais... Não? Eu fiz por um tempo...” Ahá, então é isso! Foi assim que Serafim Medina conheceu Buhdda (e Bruce Lee provavelmente)! “Kung fu não é só sair por aí batendo nos outros, tem toda uma filosofia por trás, uma conduta, sabe? É muito bom.” Por isso o doutor sempre recomenda á todos seus pacientes que façam artes marciais, pois isso desenvolve não só o corpo como a mente também. Ao final da consulta, depois de pedir um exame, o bom doutor também me recomendou uma boa academia de artes marciais e uma pesquisa sobre a vida de Buhdda.

Na segunda visita, dessa vez para analisar os resultados do exame, o doutor estava menos alegre. Deu uma notícia terrível para uma paciente ainda pouco. Detesta dar notícias ruins, mas o trabalho de um médico é assim: “a gente reza pelas boas notícias, mas as notícias ruins também existem”. Quem dera todas as notícias fossem boas. “Mas nessas horas temos que usar nossa experiência, nosso controle, para podermos não desabarmos junto com as pessoas. A dor é inevitável, o sofrimento opcional. Nessa hora, temos de contornar o problema, usar um pouco de nossa lucidez”.

Enquanto observava meu exame, perguntei como ele conseguia dar essas notícias. “É muito difícil. É como eu te disse: a gente tem que se afastar um pouco do sofrimento, mas sem perder... a sensibilidade, a simpatia que temos com o paciente. Por mais que a gente tente, nós ficamos sentidos também”. Uma pausa. “Mas é até bom para fazer pensarmos sobre nossas vidas, sabe? O que tenho feito de minha vida? Fiz as escolhas certas? O que posso fazer agora? Esse tipo de pensamentos, entende”. Entendo.

“Mas não se preocupe, você não vai receber uma má notícia hoje: seu exame está perfeito!”, disse, mais entusiasmado, o doutor. Agradeci e antes de ir embora me dei conta de que havia algo de novo na mesa do doutor: uma pequena estátua do Buhdda ao lado de uma caixinha de incenso, a qual ele começou a abrir antes que eu fechasse a porta do consultório.