Todo brasileiro é ladrão !!!

Outro dia, como de costume, fui à banca de jornal para ler uma revista. E, poucos instantes após começar a folheá-la, eu fui surpreendido com uma conversa acalorada de duas pessoas que entraram ali.

Um deles, um senhor muito bem vestido, que trajava um terno finíssimo e sapatos perfeitamente engraxados, esbravejava, em alta voz, uma frase que chamou minha atenção e também surpreendeu as demais pessoas que estavam naquele local.

“Todo brasileiro é ladrão”, dizia ele.

Naquele momento, era impossível deixar de prestar atenção no diálogo que se seguiria.

Esse senhor, a partir de então, começou a apresentar uma série de argumentos para justificar a sua opinião acerca da afirmação dita: “todo brasileiro é ladrão”.

Aqui, procuro de modo breve apresentar as principais idéias e narrativas ouvidas naquele dia.

Logo após repetir que “todo brasileiro é ladrão”, ele passou a fazer comparações do nosso povo com pessoas de outras nações: “os franceses são pessoas finas e educadas, os ingleses são arrogantes e frios, os suíços são liberais, os japoneses são inteligentes, os portugueses são burros e os brasileiros são ladrões”.

Ele disse também: “o brasileiro nasce, cresce, trabalha, reproduz e, tudo isso, com um só objetivo, que é roubar, roubar e roubar”. E dizia mais: “não importa a raça, a cor, a idade, o sexo ou a religião, todos são iguais. Todos brasileiros têm a mesma essência, que é roubar, roubar e roubar”.

Nesse momento da conversa, eu pensei que se tratava de uma pessoa estressada ou de um cidadão desapontado com um fato cotidiano qualquer, que estava simplesmente desabafando em um local público. Naquele instante, eu achei que só ouviria as mesmas reclamações de sempre ou a repetição de velhos preconceitos. Pois, todos nós sabemos que muitas pessoas quando estão nervosas e querem justificar um determinado problema acabam usando idéias preconceituosas, como por exemplo, a de que a mistura das três raças (branco português, negro africano e índio) é a razão primordial para todos os nossos males. Mas, ao invés disso, a longa conversa que se seguiu tomou outro rumo.

E, enquanto eu pensava em retornar à leitura da minha revista semanal, ele novamente repetiu: “todo brasileiro é ladrão”. E, gesticulando rapidamente os braços, prosseguiu dizendo: “aquele que nega isso, além de ser ladrão é também um grande mentiroso”.

Nesse momento, ele foi interrompido pela outra pessoa, que passou a questioná-lo sobre o embasamento de tais idéias. O outro senhor, que tinha os cabelos e barbas grisalhas e também estava muito bem trajado, parecia interessado no esclarecimento daquelas colocações. E, não só ele, mas, com certeza, todos os demais ouvintes que estavam ali.

Então, o narrador passou a apresentar uma série de explanações pormenorizadas.

Aquele senhor elegante detalhou uma série de teorias usando exemplos que iam desde Sigmund Freud (o pai da psicanálise), passando por textos sagrados da Bíblia e do Alcorão (principal livro do Islamismo), chegando até ao cinema americano, citando, como por exemplo, a série de filmes “Guerra nas Estrelas”, do diretor Steven Spielberg.

Para ele, cada sociedade apresenta determinado número de particularidades que acabam diferenciando uma das outras. Entre tais características ele citou: a língua, os traços físicos (cor da pele, estatura etc.) e os costumes e valores. Mas, além disso, ele afirmou também que alguns defeitos de caráter estão mais presentes em determinados grupos. E que o roubo seria algo natural aos brasileiros.

Conforme ele pensa, toda a sociedade brasileira está alicerçada na prática do roubo. Para justificar isso, ele citou diversos exemplos pessoais, que mostravam sua considerável experiência de vida e seu amplo conhecimento de várias instituições públicas e privadas. Vale ressaltar que essa conversa foi bastante longa e que vários nomes, sobrenomes, datas e locais foram exaustivamente citados e repetidos.

De modo geral, independente da vertente que ele usava (a psicanálise, a religião ou a ficção científica), todas as explicações deixavam claro que o brasileiro tem uma “qualidade nata principal”, que é roubar, roubar e roubar.

Conforme afirmou, toda a sociedade brasileira está alicerçada na prática do roubo. Para ele, uma pessoa só terá ascensão social e econômica se tiver essa “característica” bem desenvolvida. Se uma pessoa não desenvolvê-la, ela jamais será bem sucedida, ou seja, terá uma vida de frustrações e desgraças. Mas, conforme explicou bem detalhadamente, nem todos os brasileiros desenvolvem essa “característica”, o que é raríssimo e extremamente atípico. Tais pessoas são “defeituosas” ou “anormais” e acabam sendo “eliminadas” ou “descartadas” pelo nosso sistema social.

A “força da seleção natural” conduz a pessoa “anormal” (ou seja, a pessoa “não-ladra”) ao fracasso social, disse ele.

Todo brasileiro, como qualquer pessoa, tem desejos e vontades. Mas, o que “leva” ou “conduz” um brasileiro a casar, desejar um emprego, praticar um esporte ou buscar uma religião, trata-se de uma única coisa: “querer roubar, roubar e roubar”.

Muitos brasileiros inconscientemente não sabem disso, mas, ao longo dos anos e nas condições adequadas, essa “característica” vai acabar dominando totalmente sua vida.

Para ele, quando uma pessoa não tem consciência que “todo brasileiro é ladrão”, essa pessoa trata-se de uma “anormal”, ou seja, ela não entende como se processam as relações dentro de nossa sociedade.

E ele fez um desafio ao ouvinte: “veja as pessoas à sua volta e comprove isso!!!”.

Muitas pessoas não são, a princípio, dominadas pelo desejo incontrolável de roubar, roubar e roubar. Mas, à medida que elas estão num ambiente propício a essa prática, o desenvolvimento dessa “característica” de querer roubar, roubar e roubar se manifesta rapidamente. Muito rapidamente !!!

Pode parecer estranho, mas, quando o narrador se referia a “característica especial de todo brasileiro”, ele sempre citava três vezes: “roubar, roubar e roubar”.

E, novamente, o narrador foi interrompido pelo ouvinte, que questionou acerca do papel da Polícia, do Ministério Público e do Judiciário nessa questão.

Nesse instante, o narrador parou, tomou um refrigerante e, após uma longa pausa, prosseguiu mais calmo, gesticulando menos e falando bem mais baixo.

“Eu atuo no Judiciário e, lá, já presenciei inúmeras coisas”, disse ele.

E prosseguiu dizendo: “quando uma pessoa ‘anormal’ (ou seja, uma pessoa que não desenvolveu a “característica” de querer roubar, roubar e roubar) procura uma Delegacia e relata um determinado crime; nada acontece. Ou se essa mesma pessoa vai ao Ministério Público e faz uma queixa; nada acontece novamente. E, quando este problema chega ao Judiciário é da mesma forma, nada acontece”. Sabe por quê? Indagou o narrador.

O funcionário público que está ali ouve tudo, registra a queixa e passa orientações. Tudo isso é feito de forma que a pessoa “anormal”, muitas vezes, pensa que o problema será resolvido. Mas, na verdade, o que acontece é que o funcionário público (digo o “brasileiro ladrão”) simplesmente passa a ficar mais informado acerca das pessoas que tem as “características” bem desenvolvidas, ou seja, ele (“o funcionário público ladrão”) fica conhecendo melhor seu aliado (o outro “brasileiro ladrão” que foi alvo da denúncia). E, passa então a defendê-lo. No nosso país existe uma rede gigantesca de ladrões defendendo outros ladrões. É por isso que ninguém que ocupa cargo público e comete inúmeros crimes vai preso. Nessas situações, o que ocorre é que a pessoa “anormal” não sabe que ela está “entregando o ouro ao bandido”.

Como assim? Perguntou o ouvinte.

A partir desse momento, o narrador passou a dar inúmeros exemplos de pessoas muito conhecidas em nossa cidade.

Você lembra do “Fulano”, aquele contador de renome? Todo mundo sabe que ele é o mais bem sucedido contador da nossa cidade. E, quando um grande empresário tem um problema na Receita, ele resolve rapidinho.

Você lembra daquele Gerente do Banco “Tal”? Quando alguém quer ter um financiamento alto, basta dar uma comissão que tudo se resolve.

Você lembra do “Beltrano” da Secretaria de Agricultura? Se um produtor rural tem problemas, ele resolve com muita facilidade.

Após alguns exemplos, o ouvinte interrompeu o narrador para fazer uma colocação, e disse: “todos esses exemplos que você acabou de citar envolvem valores financeiros”.

Mas, daí em diante, o narrador passou a apresentar outros exemplos.

Você lembra daquele caso de abuso sexual na Igreja “Tal”? Sabe por que não deu em nada? O médico “Tal”, aquele que fez a perícia, tem uma clínica famosa na cidade. E, na clínica dele, qualquer um que pagar bem pode fazer um aborto. E o Delegado “Sicrano”, responsável pelo caso, era freqüentador da mesma Igreja.

Você lembra quando a Prefeitura fraudou aquele concurso? Sabe por que não deu em nada? Um dos Promotores era primo do Secretário “Tal” e o outro é padrinho de casamento do Vereador “Tal”.

Você lembra quando aquele jovem bêbado atropelou aquelas pessoas que estavam paradas no ponto de ônibus? Sabe por que não deu em nada? O tio dele era amigo do Comandante de Polícia “Tal”. Eles freqüentam a Loja Maçônica “Tal”.

“Um cidadão “anormal” (aquele que não desenvolveu a “característica” de roubar, roubar e roubar) não entende essa “rede de relações” que existe entre as mais diversas pessoas e instituições”, disse o narrador.

Nesse momento ele pediu que o ouvinte fizesse uma pequena reflexão, dizendo: “observe a sua volta”!!! “Veja quem são as pessoas que estão ocupando os cargos importantes”!!! E completou: “só é promovido em uma instituição pública ou empresa privada quem entende isso e quem procura desenvolver essa característica especial”.

“E, o pior de tudo, é que o cidadão “anormal” não sabe que ele é uma peça fundamental nessas relações”, enfatizou o narrador.

Como assim? Questionou o ouvinte.

Quando o cidadão “anormal” procura uma Delegacia, o Procon, o Ministério Público ou faz uma confissão na Igreja. Ele, na verdade, está alimentando a rede de relações, ou seja, o cidadão “anormal” está repassando a informação ao “brasileiro ladrão”, que rapidamente sairá em auxílio de seu aliado (o outro “brasileiro ladrão”). É dessa forma que todo o cidadão “normal” (ou seja, o “brasileiro ladrão”) se dá bem e o cidadão “anormal” (ou seja, a “pessoa não-ladra”) é frustrado e excluído.

E, quando o cidadão “anormal” percebe esse “sistema” ou essa “rede de relações”, ele logo se interessa e começa a fazer parte dele. Basta para isso que somente desenvolva sua “característica natural” (roubar, roubar e roubar!!!).

Entendeu agora por que “todo brasileiro é ladrão”? Indagou o narrador.

E, desafiou o ouvinte novamente, dizendo: “quem não faz parte dessa rede”?

E, completou afirmando que quem não faz parte dessa “rede de relações” trata-se de alguém “anormal” e “defeituoso”, que certamente sofrerá muito por isso.

E, para minha surpresa, o ouvinte, ao final de tudo, concordou com o narrador, falando: “eh, você tem razão mesmo”. “Todo brasileiro é ladrão!!!”.

Após isso, eles pagaram a conta e foram embora num carrão de luxo que estava estacionado na frente da banca.

Eu ainda fiquei ali pensando naquela conversa e lembrando de inúmeros casos e situações que pareciam concordar com aquelas colocações.

Uma das coisas que mais me surpreendeu é que estava certo que se tratava de pessoas cultas e de bom poder aquisitivo. E isso é algo, no mínimo, impressionante, pois, quando se pensa na origem de uma idéia como essa (“todo brasileiro é ladrão!!!”), logo se imagina que isso está partindo de uma pessoa iletrada, esfomeada ou louca. Mas, para surpresa de todos que estavam ali, ficava claro que não se tratava de ninguém com desequilíbrio mental ou problemas financeiros. Todos sabiam também que eles não eram estrangeiros etnocêntricos, pois o sotaque e o Português fluente mostravam claramente que eram autênticos tupiniquins.

E o pior de tudo é que ele realmente parecia acreditar profundamente naquilo que dizia.

Nós temos visto um número tão grande de problemas envolvendo inúmeros crimes, nas mais diferentes áreas de nossa sociedade, que, muitas vezes, perdemos as esperanças e passamos a acreditar que os destinos do cidadão de bem e da nossa nação são os piores possíveis.

E, ainda hoje, quando lembro desse dia, eu me pergunto: “todo brasileiro é ladrão”?

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Publicado no Jornal Chico, edição n. 26, p. 05, de 16/01/2007. Gurupi – Estado do Tocantins.

Publicado no Site Voz do Marajó, em 11/03/2010. Disponível em: http://vozdomarajo.com/artigos/colaboradores/giovanni_salera_junior/todo_brasileiro_e_um_ladrao.htm

Giovanni Salera Júnior

E-mail: salerajunior@yahoo.com.br

Curriculum Vitae: http://lattes.cnpq.br/9410800331827187

Maiores informações em: http://recantodasletras.com.br/autores/salerajunior

Giovanni Salera Júnior
Enviado por Giovanni Salera Júnior em 07/11/2006
Reeditado em 25/11/2011
Código do texto: T284504
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