Sonhando Médio - Parte 2
12h05m - Não fomos almoçar não. Houve um telefonema que atrasou o almoço em meia hora. Na verdade, o almoço me preocupava um pouco. Lugar caro e eu com uma merreca na carteira. Como que adivinhando meus pensamentos, a Lari surge:
- Por falar em dever, estou te devendo, né, Rafa?
- Devendo o quê?
- Dinheiro, ué.
- Do quê?
- Oras, como você vai vir trabalhar e comer!?
- Ah...
Fiquei contente. Na mesma hora uma nuvem saiu da frente do sol e iluminou minha mesa. Foi poético.
- Só faz um favorzinho pra mim?
- Claro...
- Leva esses cheques lá em cima pra Jéssica assinar...
- Sim...
- E entrega essas cartas pra Amanda.
- Tá! Mas quem é Jéssica e quem é Amanda, mesmo?
- Você já esqueceu?
- Sim - E fiquei tentado a responder com um "E como é que vou lembrar se na hora minha oxigenação cerebral estava escassa por causa da vergonha?".
- Jéssica é aquela loira e Amanda é a da Recepção.
- AH, lembrei.
Jéssica tinha os olhos azuis que pareciam frios como um iceberg. E Amanda tinha uma bunda que parecia grande demais pro resto do corpo.
Engraçado não decorar os nomes e lembrar de cada detalhe físico de cada uma das mulheres que me foram apresentadas.
Subi lá e tive pelo menos cinco troços. Voltei e a Lari me deu um bolinho de notas referente à alimentação e transporte até o fim do mês. Muito engraçado o montante ser bem mais que a metade do salário que eu recebia no emprego anterior.
12h45m - No elevador. Elevador dos fundos, cheio de reboco e com uma espécie de lona acolchoada (?) revestindo os três cantos do elevador. Elevador pequeno. Eu, Lari, Cristiano e Olívia. Nome bonito. Moça bonita. Bem na minha frente com o cabelo ainda um pouco molhado. De salto alto. Vi que teria problemas no futuro...
13h35m - O almoço foi bacana. Um monte de gente de roupa social com cara de participante de casa de swing deixando metade na comida do prato; uma janela grande com vista para uma casa de aparência colonial de muro alto forrado de trepadeiras e taxistas que não paravam de ir e vir, fumando inquietos, querendo ganhar dinheiro e não conseguindo. Coisa com a qual estou bem familiarizado, diga-se de passagem...
13h50m - De volta ao batente. Enrolei bastante escovando os dentes e baforando o Glade de flores silvestres - ou viadagem que o valha. Assim que saí do banheiro recebi a seguinte multa da Lari:
- Rafa, preciso que você pague essa conta lá na Caixa.
- Beleza... Onde fica?
- Um pouco antes da Marisa, perto da Saída do Metrô.
- Tem algum macete ou é só ir pagar e pronto?
- Não, normal... É no primeiro andar, tá?
- Tá.
- Esse horário é sossegado lá...
14h05m - Saí, com um cheque de muitos mil Reais em mãos no calor da Avenida Paulista, apinhada de gente de todos as espécies indo pra lá e pra cá.
- Amigo, você gosta de crianças?
- Não muito...
- Tem um tempinho pra falar comigo?
- Nem, tô trampando também, velho...
- Ah, beleza, obrigado, hein?!
Peguei a senha: Número 180. Subi. O painel mostrava o número 135 e não tinha lugar pra sentar e eu com um sono pós-almoço que ardia meus olhos.
- Qual é o seu número, moço?
Respondi.
- Toma, fica com o meu... Não posso esperar tudo isso (risos).
- Ah, muito obrigado.
Olhei o número. 178. Bom, já era alguma coisa.
14h30m - Consegui sentar. Fiquei durante algum tempo em pé com alguns bancos vagos, mas esse aqui é especial: tem uma cruzada de pernas bem do lado.
14h34m - As pernas se descruzaram depois que o número 157 foi chamado. Sorte madrasta.
14h48m - Já olhei o relógio do celular quatrocentas vezes desde que sentei. Queria entender qual é a pressa, já que só posso ir pra casa depois das 18h30m. Já olhei essas mesmas caras trinta vezes. Agora tem uma velha aqui atrás reclamando que não enxerga a senha. Começou a falar do mau atendimento do gerente. E que em sua época dava o sangue pra atender bem os clientes. Olho pra trás pra ver a velha mas acabo me deparando com cabelos curtos e pretos e com um par de olhos verdes no rosto de uma espécie de Zooey Deschanel brasileira de pernas grossas e compridas e cruzadas bem alto. Em suma, quase tive um infarto, o que me motivou a enterrar a cabeça nas mãos em concha e cochilar e sonhar comigo e com ela numa loja de discos em Michigan.
15h12m - Acordei assustado sentindo que meu bolso dentro do bolso estava vazio. Como eu odeio andar com dinheiro na carteira (e esse é o melhor ódio que eu posso ter, já que é uma coisa que mesmo que eu queira corroborar com o ódio e gerar o câncer necessário, não posso), embolei a grana que a Lari me deu, fiz algumas voltinhas com um elástico e joguei dentro. Apalpei o bolso e meus quinze dias de metrô, ônibus e almoço caro ainda estavam lá dentro.
15h17m - Tem um carinha um pouco atrás de mim com o fone um pouco alto, ouvindo música eletrônica e funk. Tenho vontade de agarrá-lo pelo pescoço e atirá-lo lá no térreo. A senha é 166 e a Zooey tupiniquim levanta e se escora no balcão. Um movimento de pescoços masculinos é feito em sua direção. Um tiozinho bigodudo sentado na primeira fileira debruçou-se na cadeira pra apreciar. Caralho, bem que ela poderia ser a "Dona Morte" do Pulp do Bukowski...
15h27m - "176", anuncia o monitor LCD caro. A velhota continua falando da vida dela na fileira de trás. A senha dela é a 189. Dei a minha senha pra ela. Ela agradeceu. Meu número foi chamado. Ela desejou que Deus me abençoasse. Fiquei sem saber o que falar e fui lá pagar as contas de quem me daria condições de pagar as minhas...
15h45m - O porteiro do período da tarde não botou muita fé que eu era um funcionário novo do escritório e ficou enchendo o saco pra liberar a catraca. Tive que esfregar o comprovante de pagamento na cara dele e ficou tudo certo. No corredor que levava ao elevador sujo dos fundos encontrei um gato preto muito lindo e gordo que me desprezou totalmente. Sempre me lembro dessa superstição idiota de que gato preto dá azar. Coisa de gente besta que não tem o que fazer. De qualquer forma, o elevador estava quebrado e eu tive que subir os cinco andares de escada. Subi pensando no gato, mas não sei por quê...
15h50m - Desci as escadas correndo com um monte de Guias pra pagar no Banco do Brasil. O porteiro não encheu pra liberar a minha saída. Fui interpelado novamente por um promotor de alguma instituição de caridade para crianças se eu tinha alguns minutinhos. Eu não tinha. Ele deu uma olhada bem graúda pro meu cheque. Não sei o porquê de ficar impressionado com um cheque de dezoito mil reais dando sopa na sua frente...
16h10m - Fui atendido por um caixa indiferente e bonito. Só que como todo homem bonito, parecia ser boiola. O cara parecia um robô digitando inúmeros números e grampeando comprovantes às Guias. Depois que ele terminou, coloquei uns clipes em tudo e dei tchau e agradeci.
- Calma, ainda tem mais dez aqui...
- Ah, tá.
Que fora...
16h33m - Já de volta ao escritório. O porteiro assim que me viu adentrando o saguão posicionou o cartão pra liberar a catraca. O gato preto me desprezou de novo. Subi os cinco andares de escada.
16h42m- Quase que eu me fodo. Parece que o pessoal do andar de cima vai descer. Uma das mulheres maravilhosas que eu não lembro o nome trouxe uns vasos de vidro de 1 e umas plantas de 2 metros de altura pra decorar as outras salas e eu quase que quebro um desses vasos tropeçando num degrauzinho muito que do desnecessário entre o almoxarifado e a sala da administração. Suei frio quando o vaso tombou pra frente. Fiz um movimento rápido e consegui segurá-lo em tempo. O ruim foi ter dado uma topada com o dedão do pé no degrau. O dedão da unha encravada. Sempre que olho esse dedo penso que a unha vai sair do outro lado da carne...
17h00m - A Olívia pega as coisas e vai embora. Percebo que quando ela sorri aparece um furinho na bochecha esquerda e na bochecha direita ele inexiste. Muito peculiar, tal traço.
17h59m - Percebi que dá pra acessar a internet. A Lari subiu pra fazer alguma coisa tem mais de meia hora. Tem um carinha aqui, agora, muito simpático. Simpático demais pro meu gosto. O tipo de carinha que me dá preguiça de início por falar demais, mas que acabo gostando com o tempo por causa do tipo de humor. Até que esse tipo de humor erotômano enche o saco e eu desisto de vez do ser humano. Aliás, que tipo de carinha que não me dá preguiça, hein?
18h05m - Encontrei um verdadeiro gênio no Recanto das Letras!
18h08m - Entrei no Hotmail e li os e-mails de uma leitora e o MSN conectou sozinho. A Camila estava online. Abri a janela dela. A conversa foi mais ou menos assim:
R diz: HEBE
C diz: PÁRA UHASUHSHUSHUASUHAHUASHUSAUHASHUAUHA
C diz: E COMO TÁ AÍ?
R diz: PORRA, DA HORA! A parada é num prédio aqui que dá pra ver a galera passeando com o cachorro fresco na Paulista.
C diz: USUHSHUSHUSHUASHUSAHUAHSUHAHAHA
R diz: Tô vendo que daqui uns 6 meses vou querer abrir essa janela e pular.
C diz: HASUHASUHSAUHUHSAHSUUHSHUSAHSAHAHA
R diz: quer micate?
C diz: SHUSAUHASHUSAUHASHHSAA
18h35m - A Lari não apareceu e eu não sei se eu posso ir embora. Quer dizer, ela não manda em mim, mas sei lá, vai que pega mal. Decidi não me importar muito com isso e dei tchau pro Cristiano e caí fora de lá. Desci de elevador. E não encontrei o gato no corredor.
18h39m - Parei diante da Hering apalpando o bolinho de notas de cinqüenta. Entrei e comprei duas camisetas.
18h50m - Entrei num shopping de coisas diversas na intenção de comprar um MP4 desses coreanos filhos da puta mas não fui muito feliz no meu intento. Queriam me vender um ROSA CHOQUE de 2GB por R$75,00. Pior do que coreano filho da puta é brasileiro filho da puta funcionário de coreano filho da puta.
19h05m - Tenho fome e entrei numa bomboniere bacana da Brigadeiro e não tinha nada do que eu queria. Comprei uma bolacha de banana com canela e um Toddynho e fui pro ponto de ônibus.
19h15m - Entrei no ônibus cheio. Tem umas três mulheres aqui que me colocariam de quatro rapidinho. No entanto, a olhada que ganhei foi a de uma bicha gorda de cabelo espetado. É a vida.
19h35m - Terminal Parque Dom Pedro (a.k.a: Inferno na Terra). Fila do ônibus 3459-Itam Paulista. Terceira fila do ônibus, eu quero dizer. As outras duas estão insuportavelmente grandes demais pra minha paciência. O primeiro ônibus chega e sai rápido. O segundo veio logo em seguida e saiu rápido também.
20h10m - Tem um negão aqui atrás de mim de olhos arregalados e que não para de resmungar e de encarar todo mundo. Ele abriu o visor do celular e eu vi que o plano de fundo é do Corinthians. Enfio a mão no bolso cheio da grana e fico inquieto esperando um soco no rim e um assalto.
20h11m - Eu conheço o cara, calma. Ele era segurança no meu antigo emprego. A gente conversa um pouco sobre amenidades e depois ficamos cada um no nosso canto, praguejando muito e desejando a morte de todos.
20h40m - "Já" estou dentro do ônibus, devidamente sentado e comendo minha bolacha e bebendo o Toddynho quente. Coloquei a touca na cabeça e cobri os olhos. Dormi, ao som de bichas escandalosas do telemarketing falando do dia de trabalho. Racinha odiosa do caralho. A de operadores de telemarketing que não param de falar de trabalho mesmo fora dele, eu quero dizer...
21h30m - Acordei, depois de muito blasfemar nos meus sonhos. Esperei mais um pouco e levantei pra descer. Tinha como plano passar no mercado e comprar lasanha congelada e dois sacos de batata frita também congelada. Encontrei a Andrinha na parte traseira do ônibus e fiquei dando umas cotoveladas nela, que virou puta da vida e pronta pra xingar quando viu que era eu. Papeamos um pouco e eu desci uma meia dúzia de pontos depois, em frente ao Cemitério da Saudade. Atravessei a avenida e fiquei olhando as lápides do outro lado. Ainda entro nessa porra pra tirar fotos, ah se entro...
21h55m - Mercado dos infernos!
22h34m - Já tem meia hora que cheguei em casa. Demorei cerca de dez minutos pra conseguir entrar no Google. Tem um amigo do meu irmão que eu não suporto olhar na cara no computador da sala utilizando toda a conexão num jogo online. Como não há nada no mundo que me irrite mais do que lidar com panelas, fui fritar as batatas pra me indispor e conseguir o mau humor necessário para escurraçar o ilustre visitante. Uma gotícula de óleo pingou na minha mão e eu logo botei o infeliz pra rua. Coloquei a lasanha no microondas e fui pro banho.
23h59m - Realmente não lembro o que aconteceu na última hora. Devo ter me empanturrado de fritura e xingado meus irmãos ou batido uma punheta; sei lá. Em casa a hora costuma passar rápido demais. Só que hoje eu vou dormir ciente de que amanhã terei outro longo dia pela frente. E depois do sábado e domingo, mais cinco longos dias. E assim, até sabe-se-lá-quando. Não sei se fico muito contente com isso. Nasci pra ser rico, sabe? Só posso ter nascido pra ser rico. Larguei Análise de Sistemas (depois de 4 anos perdidos na indecisão sobre o que fazer e na falta de horário pra cursar Fotografia no Senac) pra fazer Letras e desisti, pois Jornalismo parece ser mais abrangente no que eu tenho como objetivo nessa merda de vida. Jornalismo hoje em dia me soa como perda de tempo e inutilidade e eu ando querendo muito cursar Psicologia. Lembro-me do meu querido amigo Bruno mergulhando em livros complicados e arrancando os cabelos por causa de seminários e leituras de autores complicados - mas parece ser muito melhor do que qualquer outra coisa (ressalvo a Fotografia que é algo que muito me inspira e me deixa bem). O que eu quero dizer é que eu não tenho aptidão e paciência pra muita coisa que dê dinheiro, sabe? Enfim, parece que o dia chegou ao fim e eu não cheguei a conclusão alguma de basicamente nada, como sempre.
00h00m - Fim.
13/03/2011