Os perigos de biografar

OS PERIGOS DE BIOGRAFAR

(crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 23.02.11)

Certa feita, em 2005, uma senhora leu no jornal vasta matéria sobre um livro que seria lançado à noite. Ficou indignada, entretanto, com duas frases que citavam seu tio. Não conseguiu o livro (posto ainda não haver sido lançado nem distribuído), constituiu advogada e requereu ao juiz que proibisse o lançamento e a venda da obra, além de pedir indenização por danos morais sofridos por ela e pelo tio. Sem poder folhear o livro (posto ainda não haver sido lançado nem distribuído), o magistrado concedeu a liminar e à noite, 40 minutos após o início do lançamento, uma oficial de Justiça adentra o Museu de Arte de Santa Catarina e manda suspender o evento.

O livro é uma peça de teatro sobre a vida, obra e padecimentos do importante e ainda pouco conhecido pintor catarinense Eduardo Dias. Um anexo reproduz em cores diversas obras do artista. A obra de ficção se baseia em pessoas reais e fatos ocorridos até a morte de Eduardo, em 1945, e visa recuperar um pouco da biografia do pintor.

A senhora injuriada, de nome Sara Regina Poyares dos Reis (assinando-se Sara Regina Silveira de Souza em seus tempos de professora no Departamento de História da UFSC), não é parente de Eduardo Dias: é sobrinha do historiador e deputado Oswaldo Rodrigues Cabral, citado brevemente no livro em uma passagem da vida do artista, de quem, como seu médico, veio a assinar o atestado de óbito.

No julgamento do mérito, outro juiz entendeu improcedentes os pedidos e cassou a liminar concedida. Como a queixosa não recorreu da decisão, o processo foi extinto - isto, em meados de 2010, mas aí os prejuízos à carreira do livro já estavam irrecuperavelmente consolidados.

A fim de coibir absurdos desse tipo - os exemplos têm sido abundantes em todo o País - e preservar a memória nacional pela publicação da história de pessoas de visibilidade pública (as "biografias autorizadas", que nivelam os retratados à planura da santidade imaculada, retirando deles todas as contradições que os tornaram humanos em vida, continuarão sendo produzidas a soldo das respectivas famílias), os deputados Newton Lima (PT-SP) e Manuela D'Ávila (PC do B-RS) apresentaram na terça-feira passada, na Câmara dos Deputados, projetos de lei para acabar com proibições a biografias não autorizadas.

Tudo para que não se venha a ter, daqui a pouco, apenas uma "História do Brasil autorizada".

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Amilcar Neves é escritor com oito livros de ficção publicados, diversos outros ainda inéditos, participação em 32 coletâneas e 44 premiações em concursos literários no Brasil e no exterior.

==> Em breve, "Se Te Castigo É Só Porque Eu Te Amo" (teatro) chegará às prateleiras das livrarias.