A VIDA DA MORTE
Ontem, por motivos óbvios busquei a morte e quando a tinha nas mãos, labutei pela vida, pois percebi que a morte não morre, possui a vida eterna!
Ainda estava escuro, era 06h50 da manhã, no horário de verão, quando uma grande agitação na parte traseira da cabana me tirou da cama. Levantei, abri a porta dos fundos, dei uma olhadinha e não percebi nada. Tomei um gole de café requentado e voltei para a cama. Fiquei deitado escutando rádio e como o barulho persistia, por volta das 07h00 levantei definitivamente. Abri a casa e quando fui aos fundos um enorme gavião levantou vôo próximo a mim.
De início não dei muita atenção. Voltei para dentro da cabana e fui preparar o desjejum. Com o movimento natural do início do dia, andando para lá e para cá percebi que uma boa parte das galinhas estava buscando abrigo na horta e na frente da casa e que uma grande quantidade de pintinhos se protegia na lavanderia.
Como os fatos não eram corriqueiros fui verificar melhor o que estava acontecendo, e então me dirigi até o local aonde o gavião havia estado e lá constatei que havia uma franguinha degolada. Fiquei muito contrariado. Cheguei mesmo a proferir alguns impropérios.
Enquanto fazia o café tive uma idéia: vou pegar este “filho da mãe”. Tomei café; alimentei os cavalos e joguei milho no terreiro, porém, nenhuma galinha se apresentou para comê-lo o que indicava que o predador ainda estava por perto. Outro sinal por mim detectado era o piar da garça negra. Deixei a franga sem cabeça no mesmo lugar em que a encontrei; preparei o rifle e fiquei de olho, melhor dizendo: de ouvidos na garça negra.
A morte da franguinha estava martelando na minha alma. Não me conformava com tamanha ousadia do mestre gavião. Ele havia desrespeitado o tratado de convivência pacífica e de respeito mútuo firmado por mim e pelos “encantados” do lugar. Ele havia atacado os meus protegidos dentro do meu território e a poucos metros do meu repouso. O sofrimento da galinha-mãe e das três irmãs da “de cuja” era traduzido pelos seus olhares de medo e me cobravam uma atitude. Pois bem, depois de uns “bons” minutos angustiantes, recebi os avisos. As galinhas se ouriçaram e a garça negra piou freneticamente. Corri, agarrei-me ao rifle e me dirigi atento para os fundos da cabana. Assim que passei pela porta um enorme gavião levantou vôo e pousou numa árvore seca a uns cinquenta metros de onde eu estava. Tomei posição de tiro, ajoelhando-me e apontando a arma na sua direção. Inspirei e expirei. Tornei a inspirar e segurei o ar para a mão não tremer. Apertei o gatilho da arma, e bummmm! Antes de soltar o ar dos pulmões vi o mestre gavião em tremenda dificuldade pendurado no galho da árvore seca. Imediatamente tive certeza que o havia atingido, e aquilo me deu uma enorme satisfação.
Fixo na posição em que me encontrava, fiquei observando a sua agonia, e quando ele despencou ao chão, corri para dentro da cabana, vesti um par de luvas de couro e fui ao seu encontro. Na sua agonia de morte, tentava escapar. Corria e voava rasteiro pela relva até se entocar numa moita de capim. Com muita excitação, pulei sobre ele e o agarrei pelo pescoço. Para se defender ele cravou suas enormes unhas no meu braço direito, só não me feriu por causa das luvas de couro. Com o coração pulsando acelerado voltei para a cabana e prendi-o numa caixa (engradado) verde de plástico.
Por causa da emoção fiquei andando para lá e para cá sem saber ao certo o que fazer. Depois de algum tempo, com o meu pulsar já mais cadenciado, peguei uma corda fina e atei o seu pé. Amarrei a ponta da corda no pé do banco de madeira; após certificar-me de que estava firme, liberei-o da caixa-engradado. Ele se debatia assustado!
Eu estava deveras eufórico, muito excitado, queria matá-lo, pensei em depená-lo e comê-lo, mas de repente, frente a frente com aquela magnífica máquina mortífera; o rei dos céus, os meus sentimentos me traíram. Passei a examiná-lo melhor e percebi que a bala havia atingido somente a sua asa direita, bem na junção dela, aonde dobra quando está fechada, e que daria para curá-la. O sentimento de amor se apossou de mim e falou mais alto. Percebi que aquele ser de morte dependia de mim para salvar a sua vida, então corri, peguei o estojo de remédios e com muito jeito passei a medicá-lo.
O executor da vida, o senhor da morte, estava cara a cara comigo, era a morte dependendo da vida. Naquele momento, eu “vida”, era a morte para a morte. A morte estava com ele e também comigo; ambos éramos emissários da morte. Ele havia ceifado uma vida e estava prestes a perder a sua própria, mas, as suas dificuldades eram as minhas dificuldades! Eu como verdadeira fronteira da vida e da morte, tinha o poder da decisão e me debatia, pois tinha consciência que as dificuldades, os muros, as barreiras, as criações mentais, somos nós mesmos quem as criamos por não termos controle da nossa vontade, de modo que constantemente estamos criando realidades físicas, não realidades espirituais, e aquele momento era um momento muito especial, era espiritual.
Conhecíamo-nos; sabíamos quão perigosos éramos, mas nunca havíamos chegado tão perto um do outro, e por isso mesmo estávamos assustados, nos estudando.
O momento era de respeito mútuo e o silêncio que vagava entre nós traduzia o nosso arrependimento: eu por tê-lo ferido; ele por ter sido imprudente, afoito, arrogante. Pela sua posição defensiva e cara de assombrado ele deixava transparecer a sua culpa; eu por minha vez, cuidando do seu ferimento, com o coração acelerado e lágrimas a escorrer pelo rosto, demonstrava a dor pela estupidez do meu ato.
Passei o dia de ontem com as atenções voltadas para ele. Arranjei um lugar fechado e seguro no galinheiro e o coloquei lá. Providenciei comida – carnes cruas e água. - No final da tarde fiz novo curativo na sua asa. Não me cansava de admirar tamanha beleza, a todo o instante dava uma voltinha pelos arredores da sua prisão e ele me media com seus colossais olhos amarelos e pretos!
A sua penugem multi colorida era como um manto real, o identificava. Ele era um rei. O senhor dos ares e da terra; um exímio caçador; o guerreiro temido da morte.
O terreiro da cabana se agitou. Galos, galinhas e pintinhos zanzavam pra lá e pra cá morrendo de medo do bicho feroz, porém querendo conferir de perto se aproximavam perigosamente. Alguns se arriscavam a passar o mais próximo possível do cativeiro para conferir, para se embasbacarem com tamanha beleza, pois não era todo dia que se tinha oportunidade de ver um gavião rei, e mesmo porque, os que tiveram chance de vê-lo tão de perto não conseguiram viver para contar.
Foi um reboliço danado, até as três “luas” – gatinhas - ficaram curiosas.
Num passe de mágica passei a ser o herói do lugar. Todos os animais me olhavam com admiração, mas como ninguém pode evocar o direito à vingança, mas à justiça, depois de dois dias ele ganhou a liberdade. Nada mais verdadeiro, porque a vingança conturba, nesta ou na outra existência, a alma de quem a pratica.