SOBRE PIÕES E RESSACAS

Eu vejo um garoto. 7 anos de idade? Ele está na sala de casa dando gargalhadas. Está rodando como um pião. Rápido, mais rápido, mais! De repente, ele para e deita-se no chão com os olhos fechados...

Não sei o que as crianças pensam quando rodam, rodam e se deitam. Não consigo lembrar no que eu pensava ontem à noite. Quem inventou a ressaca, o Homem ou o mar? Ou seria a lua? Estou agora andando pela praia. A orla está arrasada. A linha de areia úmida se estende até perto da calçada. Lá, na demarcação de território do mar e da terra, estão todo tipo de dejetos: garrafas plásticas, uma boneca sem cabeça, flores murchas, uma sandália solitária e muito sargaço. O mar continua revolto, turvo, ameaçador. Parece que ele ainda acha pouco o que fez na praia. O sol não veio trabalhar, mas o vento sul e frio sim.

No que foi que eu pensei tanto ontem à noite? Deve ter sido importante ou não. Não consigo. Algumas cenas vêm partidas: estou abrindo a segunda garrafa de uísque. Vejo gente se mobilizando para comprar mais uma grade de cerveja. Todos parecem muito alegres, afinal ganhamos no futebol, por bem ou por mal, mas ganhamos. Vejo violões sendo empunhados. As pessoas cantam, bebem, fumam muito. Acabo de abrir minha segunda carteira numa tarde. Estamos todos alegres. Estamos? Acho que sim, mas não consigo.

Arrisco molhar os pés na água, mas está tão fria! Fico observando meu pé afundar na beira d'água. O que é que nos faz rodar como um pião até que o mundo começe a girar do mesmo jeito? Sinto-me tonto. O mar não só entende de ressacas, mas de vertigem também. Ele balança os barcos até vomitarmos tudo que nos mantêm em pé. A contrapartida é que vomitamos nele de volta. Estamos quites.

Tento perguntar aos gregos. Eu preciso entender por que rodamos como um pião até que o mundo rode também. Vejo agora Dionísio e ele está numa clareira da floresta. Há uma multidão ao redor dele. Ele conta estórias engraçadas. Bem, devem ser, pois todos estão rindo. Daqui da distância, parece um excelente anfitrião. Ele também mantém todos os copos cheios. São taças belíssimas de ouro e de prata e ele vai despejando dentro um líquido espesso e escuro. Todos riem, se abraçam. Algumas mulheres - ou seriam ninfas - começam a dançar. Outros tocam flautas e liras. Daqui dessa praia devastada, tento perguntar a uma das mulheres. Ela tem cabelos longos e ruivos. Ela é belíssima. Ela se afastou um pouco do grupo e tenta balbuciar algumas palavras, mas não entendo. Pra minha surpresa ela começa a rodar e rir e... ainda vejo-a cantando a melodia mais linda que já ouvi. Desvio meu olhar para o resto do grupo e vários casais, trios, grupos, já estão se formando, se acariciando, se beijando. Não vejo mais Dionísio. Queria perguntar a ele um monte de coisas, a começar por qual safra era aquela daquele vinho, mas agora é tarde e o resto do grupo está muito ocupado para me dar atenção. Ao amanhancer vão estar todos caídos na grama inconscientes, desmemoriados, cansados. Fartos? Eles vão ter que se levantar e correr para suas casas antes que os pais, os maridos, as esposas, enfim, alguém perceba a ausência deles.

E eu aqui nesta praia nublada. Só. Mantenho meus pés na areia molhada. Quero eles bem firmes agora. Com a ajuda da água, a areia já dá uma volta no meu tornozelo. Sinto alguma estabilidade por fim.

Tenho uma lembrança engraçada: na casa onde passei a infância, na parte de dentro da porta do banheiro, havia uma cruz pintada à mão: era um sinal de uma promessa! Após passar a noite em vômitos e dores, um tio meu tinha prometido nunca mais beber! Ele nunca cumpriu a promessa, mas a cruz ficou lá pra sempre. Penso em riscar uma cruz na areia, na flor da água, que dure na proporção da minha determinação, mas desisto. Mas eu queria entender.

Tenho uma outra visão: eu me vejo agora com uns 13 anos, junto com meus primos, aqui mesmo nessa praia, todos bêbados. Era uma noite super agradável e tínhamos acabado de tomar uma garrafa de uísque nacional - e, é claro, ruim, mas eu achava que uísque era assim mesmo. Havíamos roubado a garrafa da casa dos tios e agora havíamos saído para comprar cigarros. Fumávamos um atrás do outro, sofregamente, e nunca mais cigarros foram tão gostosos. Mas eu ainda não entendo.

Tem uma outra cena da mesma época. Estamos, o mesmo grupo, numa cabana no interior do Rio Grande do Norte, no meio do nada. Era aniversário do garçom da lanchonete que frequentávamos e andamos léguas e léguas, como eles dizem, até chegarmos nessa casinha de barro batido e teto de palha. No interior, estamos sentados ao redor de uma mesinha baixa à altura dos joelhos, sentados num banco que era da extensão da mesa. No centro, está uma panela enorme cheia de um cozido das patas da vaca. Ao lado da panela, estão as garrafas de aguardente e os copos. O anfitrião, muito humilde, mas muito orgulhoso do seu banquete, enche todos os copos até a borda. Não, não eram dois dedos, como eu costumava ver nos botecos. Era até a borda. Até o limite da sanidade... então, todos nós, garotos, com aqueles bigodinhos ridículos ainda a crescer. A do santo já derramada no chão de areia batida, que eu nem me lembro qual entidade era, se católica ou africana, porque mesmo nem acreditava em um ou outro. Pensando bem, hoje em dia, acho que teria sido melhor ter acreditado em alguma coisa, mas enfim. Tínhamos, na outra mão, uma garfada do guisado. Virávamos os copos por garganta a dentro. Não, não era fazendo beicinho de golinho e golinho. Tinha de ser com a boca bem aberta de um gole só e sem caretas, porque éramos Homens. Em seguida, comíamos a carne gordurosa. Aquela sensação do líquido descendo, queimando o esôfago, espalhando-se por todo o estômago. O que era aquilo? Eu ainda não sei. Estou escrevendo pra entender, para gritar perguntas.

Tento pensar, mas a cabeça dói. Deixe eu tentar, enquanto meus pés se enterram mais e mais:

Ah isso é perversão fuga da realidade não querer crescer a entrega aos sentidos da carne a volta ao paganismo aos bacanais de Baco você não era Dionísio seu dissimulado que falava grego e agora latim ou seria uma falha moral mas uma falha moral de fábrica ou foi acidente de percurso desgaste natural das peças e então faríamos um "recall" para a troca de partes defeituosas ou a falta de deus ou justamente o contrário ou não a busca de

Estou tão angustiado. O corpo dói. Mas eu preciso.

Ouço uma voz por trás de mim. Não me lembro há quanto estou aqui. Tento me virar, mas os pés estão cravados na areia. Sinto-me ridículo. Uma senhora baixinha e gorda aparece ao meu lado. Ela tem um chapéu de palha por cima de um lenço na cabeça. A pele é bronzeada e enrugada. Na face, um sorriso desdentado. Ela parece tão familiar, mas de onde? Ela inicia a conversa:

-- O senhor num tá me reconhecendo, não?

-- É...

-- O doutor vinha muito aqui.

-- É verdade... -- Ainda tentando me desvencilhar da areia.

-- O senhor tá engraçado. Tá querendo virar uma bananeira, é?

Eu tento ensaiar um sorriso. Ela continua:

-- Olhe, já tá tudo armadinho ali, e eu tenho uma cadeira que aguenta o senhor, reforçada. O senhor engordou um pouquinho, não foi?

-- Pois é, já pensou? - Me viro na direção em que ela apontava e começamos a andar para onde estava um carrinho de mão que portava uma grande caixa de isopor cercada de guarda-sóis fechados e cravados na areia.

-- Tá um dia feio meu filho... já vi que o movimento vai ser ruim. Mas eu faço um precinho bom pro senhor.

-- Que bom... escuta, a senhora alguma vez já rodou, rodou, feito um pião doido e depois fechou os olhos?
R Leite
Enviado por R Leite em 10/03/2011
Reeditado em 10/04/2011
Código do texto: T2840339
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