Nos meus tempos de cantor



Já fui cantor, embora tenha voz arrastada, nasalizada e seja tão desafinado quanto um gringo cantando samba. É verdade isso, pura verdade, e é bem possível que eu sorria e chore, enquanto lhes conte um dos meus momentos de "burlesco saudoso". Já ouviram falar disso, momentos de "burlesco saudoso"? Pois eu os tenho e muito...

Eu tinha 15 anos e apesar da pobreza absoluta da minha família, que se constitui uma das marcas dolorosas da minha infância e adolescência, gostava muito de cantar. Parece que vem daí a minha paixão pela poesia, porque as músicas que eu gostava de cantar eram as músicas cuja letra e melodia me embeveciam o espírito, fazendo-me viajar, divagar, sonhar... É claro que, sendo um cantor da qualidade já descrita, cantava só no banheiro ou dentro de casa, para desespero dos ouvidos de mãe e irmãos.

A comprovar que ninguém é o melhor ou o pior do mundo - há sempre gente mais acima ou mais abaixo de nós - morava na outra rua uma família bem mais pobre que a nossa. Era Dona Bibi, uma mulher de uns 45 anos, alcoólatra, com suas duas filhas: Maria José, a Zezé, bonitinha e de olhos cor-de-mel, a minha primeira namorada, e Valdinar, filha de criação, uma mulatinha esperta. Passavam mais fome e mais privações do que nós e, por isso, eu, sempre que possível, auxiliava-as com algum dinheirinho ou com alguma coisa que "nos dias de vacas gordas" sobrava na nossa despensa.

Zezé, que morreu precocemente aos 20 anos, era sonhadora, suspirosa, e adorava as músicas românticas cantadas nas emissoras de rádio pelos cantores famosos da época, tais como Carlos Galhardo, Francisco Alves, Nelson Gonçalves, Emilinha Borba, Ângela Maria, Dalva de Oliveira, Maysa Matarazzo e outros. Dona Bibi e Valdinar também compartilhavam desse gosto, mas a pobreza da família não lhes permitia possuir um aparelho de rádio para ouvir essas músicas. Nós também não tínhamos nenhum, mas os nossos vizinhos tinham e, portanto, eu, de ouvido atento e memória privilegiada, decorava todas as canções que caíam no gosto do povão e me punha a cantá-las e a assobiá-las a torto e a direito.

Às vezes, quando eu ia à sua casa, Zezé - apoiada por D. Bibi e Valdinar - me pedia que cantasse algumas dessas músicas para elas ouvirem. Se eu me fazia de rogado, alegando não ter talento para tal, elas protestavam veementemente; "Não, senhor, que isso, você canta bem, canta muito bem!" Ah, o que não faz um homem a quem aguarda uma platéia de seis românticos ouvidos femininos! Eu me inchava de orgulho e importância - por que não dizer também, emoção, pois havia uma namorada minha nessa platéia - e soltava a voz de taquara rachada! Juro para vocês que elas gostavam. E ficavam bem felizes...

Quem de vocês já ouviu falar, ou ouviu alguma canção, geralmente uma valsa, cantada por Carlos Galhardo, conhecido na nossa era do rádio como o "Rei da Valsa"? O homem tinha uma voz e uma afinação realmente impressionantes. "Bodas de Prata", "Fascinação", "A pequenina cruz do teu rosário",  "Rapaziada do Brás", "Aniversário de Casamento" e "Valsa dos Quinze Anos" são algumas das suas canções mais ouvidas no decorrer dos tempos. Pois esse grande menestrel estava na moda na MPB da época e uma valsa cantada por ele, "Em Você", era a preferida no coração da Zezé que a ouvia - cantada por mim - com os olhos perdidos num porvir risonho que, infelizmente, nunca chegou para ela...

Enquanto sorrio da cena burlesca de um cara desafinado cantando valsas para a namorada romântica e ingênua, não há como conter a saudade que me molha os olhos. Eu não sabia, mas eu tinha, nessa época, o que hoje daria tudo para ter de novo: meio século de vida pela frente, muitos sonhos para sonhar e muitas ilusões para fantasiar...

Faz um favor para a minha saudade molhada?Antes de postar o seu comentário, ouça até o fim a música inserida, a linda valsa "Em Você", interpretada pelo inesquecível Carlos Galhardo, o "Rei da Valsa".

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(Incluída a reprodução da música "Em Você", de autoria de Aldo Cabral e Ataulfo Alves, cantada por Carlos Galhardo.De acordo com a política editorial do Recanto das Letras, as músicas só podem ser ouvidas no Site do Escritor; caso você esteja visualizando esta página apenas no Recanto das Letras, use o link de controle abaixo para ser redirecionado ao Site do Escritor)    

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Santiago Cabral
Enviado por Santiago Cabral em 09/03/2011
Reeditado em 01/04/2011
Código do texto: T2836953
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