194 – UM LUGAR PARA FICAR NO CORAÇÃO...
 





 
A semana transcorrera com muito trabalho a ser realizado e fora concluído na sua maior parte... Seus dias começavam antes da cinco horas da manhã, velha e estafante rotina de acender o fogo do fogão à lenha, colocar água para ferver, coar dois bules de café um forte e outro fraco, encher as outras vasilhas e deixar sempre ao lado do fogão para manter aquecido. O caldeirão de leite fervido sempre quente com espessa camada de nata também a beira do fogão não esfriava, pela proximidade do calor desprendido das brasas... Rotina de fazenda.
Agora era esperar que o padeiro passasse como pontualmente fazia as cinco e quinze minutos... De repente ela ouvia o inheco inheco do rangido dos varais da carroça e o tropel da mula Estrela no calçamento de pedras das ruas da cidade; eram assim todos os dias. Pão quentinho na carroça tipo baú, cheiro e gosto ideal de pão francês e panhoca (pão de milho).
Na cidade pelo menos, a jornada diária começava somente quando o padeiro Geraldo passava e entregava o pão, todo dia e hora.
Ela se lembrava da época que moravam na fazenda. Linda fazenda instalada entre duas montanhas, a sede era bem ao lado da estrada de passagem das tropas que levavam e traziam suprimentos da pequenina São José da Lagoa.
Ela tinha que se levantar bem cedo para despachar os empregados para o trabalho da lavoura e os peões para cuidar do gado, era como obrigação religiosamente cumprida.
“Tia Tortinha” já se acostumara com aquele apelido colocado pelo menino mais velho dos seis filhos da patroa, na casa grande era Bá, a Ama Seca. Baixinha, pernas meio arqueadas e o pé direito voltado para dentro quase num ângulo de quarenta e cinco graus, o defeito no pé não a incomodava. Somente quando ainda criança a molecada da Vila dos colonos, literalmente pegava no pé. Mas, ela sempre deixava pra lá acostumada que estava a ver homens e mulheres sem pernas vítimas de acidentes na vida e no local onde trabalhavam para ganhar o sustento nas linhas de ferrovia que cortavam as pastagens. Até mesmo os mutilados no engenho da serraria. Tranquila ela se dedicava aos afazeres domésticos, ela e mais três empregadas da casa grande.

Já era sábado, dia de preparar para os bailes do fim de semana. Logo ao anoitecer, mal as primeiras estrelas apontavam no céu o pessoal da fazenda começava a chegar para a cantoria e o arrasta-pé, não sem antes queimar a língua na branquinha que ficava à disposição no banco ao lado do celeiro. Na verdade a festa não acontecia todos os sábados, pois, o patrão que vivia levando gado e outras mercadorias para entregar, somente autorizava a festa quando chegava de viagem.

Os três filhos mais velhos dos patrões já estudavam na cidade mais próxima, os outros ainda aprendiam as primeiras lições com a irmã da patroa, até que chegasse a vez deles também irem para lá e continuarem os estudos. Os patrões sempre diziam que quando chegasse a hora dos outros meninos, provavelmente todos eles também mudariam para a cidade, pois, a patroa não se acostumava com aquela vida na fazenda, ela que fora criada na cidade grande e estudara no colégio interno.
Ali, era a rotina de sempre cuidar dos meninos, dar ordens às empregadas, tecer um pouco e pintar e bordar tecidos com motivos florais, coisa que aprendera tão bem com as irmãs do colégio. A vida naquele fim de mundo não tinha nenhum atrativo.

Naquela solidão da fazenda, o que mais a alegrava era um velho piano que ficava na sala grande e que ela tocava sempre que o marido se ausentava da casa. Ele que fazia tanto gosto de ouvi-la tocar quando ela era solteira, agora casada e com filhos para cuidar, vivia dizendo que se não houvesse motivo (festa) ficar tocando piano, era coisa de gente desocupada e ali tinha serviço em demasia.

De tanto ouvir os meninos chamá-la de tia Tortinha, ela quase já esquecera o seu próprio nome. Embora houvesse carinho no tratamento, ela bem que gostava quando a patroa a chamava pelo nome (Jacynta...). Ana Jacynta da Silva, menina órfã, nascida com o pé direito torto no esforço de parto e deixada na casa grande onde a mãe trabalhava também desde menina e que morrera picada por cobra quando foi buscar lenha na pilha atrás do curral: local que lhe trazia boas lembranças, num daqueles bailes. Aninha era como a mãe da menina gostava de chamar a sua filha.

A patroa embora muito discreta uma vez comentara com sua irmã que morava na fazenda lhe fazendo companhia, que apreciava bastante aquela moleca, pois, ela não tinha nenhuma filha mulher e gostaria de dedicar muito do seu tempo a fazer lindos enxovais para a criança que fosse sua filha. Não que lhe faltasse amor pelos meninos seus filhos, porém, filha ela imaginava, ser muito diferente a criação e seria uma companhia para a vida inteira.
Naquela época quando Ana ouviu este comentário da patroa com a sua irmã, compreendeu o olhar angustiado que ela percebia no rosto da patroa. Ana imaginava, na sua simplicidade, que a patroa não tinha nenhum motivo para tanta tristeza. Tanta meiguice e tanta tristeza no olhar era um quadro permanente de uma Madona numa tela de pintor famoso.

O marido da patroa tinha espírito aventureiro e mesmo que não precisasse gostava de por o pé na estrada para mascatear. Quando saia a negócios levava autorização para vender produtos da sua fazenda, da fazenda de seu irmão e até de alguns conhecidos. Sempre quando retornava trazia novidades, e foi numa destas que falou que vendera a fazenda, comprara um caminhão e duas casas na cidade e que tava farto de ficar viajando no lombo de burros e que agora em diante montaria uma venda (espécie de armazém) e buscaria mercadoria na capital.
Ana estava debruçada na janela da casa dos patrões na cidade e ao ouvir o sino da matriz Nossa Senhora do Rosário marcando a hora da Ave Maria, benzeu-se.
Ana “tia Tortinha”. Lembrou-se da doce molecagem dos meninos que há muitos anos não os via. Sua patroa morrera e mesmo tendo eles se mudado para a cidade, viu a sua querida amiga e patroa Dona “Alda”, ir definhando sem nenhum motivo aparente, a não ser aquela tristeza que não se afastava dos seus olhos. No entender ou na santa ignorância de Ana ela imaginava que a patroa tinha uma vontade enorme de ter uma filha para que pudesse dividir com ela a angústia de mulher e mãe.
Ana entendia que nem todo amor dos “filhos homens” pela mãe e dela aos filhos supriria a falta de uma “filha mulher”, como se dizia naquela época.

Hoje muitas saudades da Fazenda das Piteiras, um lindo e bucólico lugar para ficar no coração para sempre. Os filhos sintetizam este mar de saudades com uma curta frase: - Meu pai foi um valente peão e minha mãe, tristeza e solidão.
Muito mais difícil do que se possa sonhar e imaginar, é a vida na forma como nós a entendemos e a vivemos que pode nem mesmo ser vida e sim, simples transição. A vida é uma coisa muito difícil de entender, mas, ficou mais fácil saber da dor de uma fotografia na parede.


 




 
CLAUDIONOR PINHEIRO
Enviado por CLAUDIONOR PINHEIRO em 08/03/2011
Reeditado em 13/02/2012
Código do texto: T2836367