BEBUM SIM, DOIDO NÃO!

A pedidos, uma crônica sobre um fato virídico (sic) das noites recifenses:

Num dos melhores filmes de Mel Brooks, “A História do Mundo”, ele nos conta, de maneira engraçadíssima, como “realmente” se deram vários “fatos” dos livros de história e religiosos. A cena de Moisés descendo o monte Sinai com os “QUINZE” Mandamentos, distribuídos em três pedras, é hilária. Enquanto descia, Moisés dá uma topada e deixa cair uma das pedras, que se quebra, com cinco mandamentos! Ele, sem perder a pose, continua a descida com as duas restantes e chama o povo para ensinar, agora, os dez mandamentos que Deus havia enviado. Rapaz, o quanto eu imaginava o que poderia ter naquela pedra que quebrou-se!

Mas a cena do filme que me remete ao texto de hoje é uma sobre o primeiro Crítico de Arte: vemos um homem vestido de peles, um Neandertal todo peludo e primitivo, entrar numa caverna cheia de pinturas rupestres. Ele para em frente a um grupo delas e fica a analisá-las demoradamente. Após algum tempo, ele bota a pitoca pra fora e dá uma bela duma mijada na parede! E assim, segundo Mr Brooks, nasceu o primeiro dos Críticos de Arte, fazendo o que eles sabem melhor: mijar impunemente no trabalho dos outros!

Numas destas noite no bar Burburinho, estava eu no palco com a agora finada banda de rock anárquico “Capitão Gancho”, todos nós preguiçosamente ensaiados, ligeiramente bêbados, tocando coisas dificílimas de Led Zeppelin e Deep Purple, sem rede de proteção, sem paraquedas reserva, sem plano B, enfim, na maior greia do mundo! Mas a farra e o bom humor não duraram muito...eis que de repente, surgiu, assim, do nada, ao que parece, um dos maiores especialistas em Rock de todos os tempos! Ele parou atrás do palco e ficou a analisar o suor sagrado do nosso trabalho, nossas execuções primorosas de clássicos eternos do Heavy Metal. O homem não demorou muito em dar o seu veredito...mas, antes, calma, que ele não botou nada pra fora pra nos molhar com um líquido amarelo e morno. Mas, naquela noite, pra mim ,foi pior!

Pra quem não conhece o Burburinho, é preciso antes dar uma explicação: atrás do palco, há uma tela, tipo uma grade do chão ao teto, que permite a circulação de ar e, principalmente, possibilita ao povão assistir da calçada, lá atrás, a todos os shows de graça. A calçada é reduto de um bando de doido que gosta de tomar vinho barato, entre outras substâncias mais desagradáveis e que gosta de ficar dando pitaco no repertório, pedindo Raul Seixas (toca RAUL!!!) ou Pink Floyd quando você quer tocar Creedence ou, às vezes, endoidam quando tocamos o que querem, enfim, tem sempre uma azucrinação, de leve, nos ouvidos dos músicos que estão no palco querendo tocar o que ensaiaram para um público lá na frente, que pagou, e outro, atrás, que, revolucionariamente, quer um show privado e Free! Mas tudo bem, tudo isso faz parte da bagunça roqueira no burburinho... Mas, naquela noite, o tempo estava feio, meio chuvoso, e não tinha absolutamente ninguém na rua, até a chegada do nosso especialista musical citado acima...

Já dizia um grande amigo que “o homem quando se explica não se justifica”, mas queria deixar claro que a intenção aqui não é repudiar o trabalho dos críticos, só que , naquela noite, a guerra total foi declarada por eles de maneira muito violenta e aberta, sendo necessário rechaçar os ataques de maneira exemplar, atirando no que se movesse e sem fazer prisioneiros!!! Então, o que aconteceu foi que nosso crítico na grade ouviu, no máximo, duas músicas e constatou, ao final dos aplausos dos ignorantes, que pagaram para entrar, em bom e alto tom:

--Esta banda é uma meeeerrda!!!

Matamos no peito o comentário esclarecido e fomos para outra do Zepelin, intricadíssima, “Kashmir”, musiquinha cheia de pra que isso, de passagens rebuscadas, de retornos com pequenas variações imperceptíveis aos leigos, Miguel, nosso vocalista, com a barba ficando branca em agonia com uma letra interminável, com agudos fora do alcance humano, tudo isso que havia sido, durante quase uma hora inteira (!) de nossas vidas, exaustivamente ensaiado , em meio a várias tentativas e paradas pra tomar cerveja e conversar merda, realmente, um trabalho miserável! Ao final da música, a plateia veio abaixo com gritos de Bravo! Bravo! Era a glória e a colheita do fruto do nosso trabalho duro!

Mas...quando os aplausos pararam.... naquele milésimo de segundo em que procurávamos nossos copos, cigarros... o guitarrista, Leozinho, jogava fora sua palheta tornada imprestável a serviço dos deuses do Rock, Mário, o batera, escolhia novas baquetas mais inteiras para o próximo número...naquele silenciozinho de nada em que só ouvíamos a cerveja e o uísque caindo nos copos...vem lá de trás então aquela vozinha embargada e sarcástica, irônica...o discurso longamente esticado...o movimento da mão direita, que partia de um extremo ao outro do palco, abarcando tudo e todos:

--Esta banda não toca pooorrra neeeenhuuuummma!!!

Amigos, aquela crítica tão despachada e direta de alguém que eu nunca vi na vida me tirou o resto de juízo que ainda havia depois de quase uma garrafa de uísque. Eu calmamente tirei meu baixo dos ombros, coloquei-o no suporte e desci do palco com meus quase dois metros e 140 quilos para encarar o rapaz agarrado nas grades. Eu não tinha percebido o quanto ele estava bêbado, mas, de qualquer jeito, o diálogo foi bem singelo e franco. Eu fiquei com rosto bem colado ao dele e disse umas palavras bem cordiais:

--Meu amigo, se você abrir a boca de novo... você está vendo aquela porta ali? Pois eu vou dar a volta e venho aqui quebrá-lo no pau e, pode ter certeza, você vai sofrer pra ca-ra-lho!

Claro que tudo era um blefe, muito mais com a intenção de se livrar de um chato do que qualquer outra coisa, mas o cara levou a sério. Ele deu dois passos pra trás e quase caiu da calçada. Partiu cambaleando, disparando um discurso revoltado e indignado:

--Que é isso!!! Violência não constrói, viu, violência não constrói! E saiu trôpego pela rua.

Retornei ao palco para encontrar os olhares assustados dos amigos, que nunca tinham me visto daquele jeito. Eu tirei por menos, dei uma risada, e continuamos o show sem maiores problemas. Mas a noite não havia acabado ainda.

Já no fim do show, acho que tocávamos “I heard through the grapevine”, versão Creedence, quando, para surpresa e preocupação de todos, o bêbado retorna mais bêbado ainda, totalmente estragado, praticamente caindo, se não se agarrasse na grade. Alguém chamou minha atenção, dizendo:

--Olha só quem voltou! Teu amigo!

Acabamos de tocar a música e o silêncio foi terrível e eterno... Você não ouvia absolutamente nada! Todos tinham os olhos voltados para o cara agarrado com dificuldade nas grades. Ele, a muito custo, conseguiu se endireitar, apesar do balanço natural dos embriagados, com todo o embaraço causado pela cachaça no sangue e no cérebro...a mão direita começa a fazer aquele gesto que já tínhamos visto na noite, que abrangia, de uma ponta a outra, toda a extensão do palco...a voz sai embargada e trêmula, mas confiante no direito da livre expressão, da democracia, de saber que vive num país livre onde você pode emitir suas opiniões sem medo de retaliação, de repressão, de tortura, custe o que custar:

--Eeeeesssa baaannnda...(pequena pausa para tomar ar) nãooo toooca pooorrra nenhuuuuma!

Silêncio mortal no palco e no bar. Todos se entreolham. É quando vem o arremate genial do bêbado-crítico ou vice-versa, a pérola!

--Mas o baixista toca pra ca-raaa-lhooo!!!

Quase não conseguimos tocar mais de tanto rir da tirada do nosso algoz! Em mais de trinta anos de convívio com alcoólatras e bêbados de fim de semana, eu nunca ouvi tirada mais genial do que esta, e olhem que os bebuns geralmente se superam, mas me excluir da mijada foi manobra e jogo de cintura que poucos políticos profissionais têm. Gênio!

Logo depois, ao final da última música, alguém me chama a atenção:

--Dá uma olhada no cara que tu ias quebrar e fazer sofrer pra caralho.

Ali atrás, de frente para a rua, ou seja, física e simbolicamente de costas para nós, estava o bêbado , totalmente apagado, mas ainda de pé, de braços abertos, agarrado em pontos extremos da grade, o corpo em forma de cruz, um verdadeiro cristo crucificado pela minha incompreensão e intolerância...bêbado ele era, mas tinha muito juízo!
R Leite
Enviado por R Leite em 08/03/2011
Reeditado em 09/04/2011
Código do texto: T2835857
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