"A chegada da família da Ilha Terceira- Fonte do bastardo"
A chegada da Família Nunes ao Brasil
Relato da mamãe no dia 27/02/08 na Barra da Tijuca enquanto eu me recuperava de uma fratura da tíbia e fíbula.
Mamãe dizendo: - O ano era 1914 e só viria a tia Maria junto com minha madrinha Maria Mendes, que seu marido, o tio Chico, mandara buscar de navio para o Brasil. Outra parte da família havia deixado os Açores para ir para a Califórnia. Eles só poderiam trazer um dos filhos da Luzia, minha avó. Foi uma choradeira geral então decidiram trazer toda a família entre as quais a tia Amélia e a minha mãe Luzia também, que não tinham tanto talento ainda para o trabalho, pois eram muito novas. A tia Maria Mendes compadeceu-se pois elas não comiam mais, não sorriam e choravam o tempo todo. Esta minha tia era gordíssima e o que tinha de gorda tinha de boa.
O tio Chico tinha posses e veio para o Brasil onde abriu uma Vacaria e trabalhava num açougue. Mandou buscar depois toda a família, que ficara lá e queria também conhecer a terra alvissareira. Eles chegaram a ter dois filhos que faleceram ainda pequenos.
O seu nome foi objeto de gozação por parte destes primeiros cariocas brejeiros e precocemente com um humor divertido. Diziam que o seu nome, Francisco Vieira Ferreira Pacheco, era maior do que ele que era um homem baixinho e invocado.
Foram morar todos juntos numa casa ali no Centro mesmo do Rio. Bordavam, costuravam e faziam crochê. Ainda encontra-se até hoje na família uma ou outra toalha cerzida em algodão cru, pedaços de retalhos dispostos em colchas coloridas e alguns trabalhos em crochê de almofadas.
O tio trabalhava no açougue junto com o futuro marido da tia Maria, irmã mais velha da minha avó Luzia. Mamãe interrompe um pouco para levantar a possibilidade dela já ter vindo da Ilha Terceira, da Fonte do Bastardo, para cá casada com ele. Depois foi morar no Ingá, em Niterói, onde minha mãe adolescente, passou quase um mês para se tratar de uma sinusite. Tia Maria nunca teve filho e por isso era tratada como “figueira do inferno” pelas duas irmãs. Será esta uma tradição da família ter irmãs às turras criticando suas faltas? Mamãe comentaria tal estada até o final de seus dias por se tratar de uma lembrança preservada pelo Mal de Alzheimer.
Brincando ainda com o próprio nome, Mamãe sorria muito ao recordar que eram tantas as luzias na família que poderia se dizer serem “Os Luziadas” numa alusão ao autor português Luis de Camões. Brincava ainda que por ser Vera Cruz havia ganho uma cicatriz em sua testa em forma de cruz.
Conta-me sobre o folclore familiar dos domingos entre os patrícios em que se cantavam fados e desafios, destacando-se o mais repetido aos netos que era o da “Menina Inteligente”.
A carne no vinhadalho
A minha mãe contou varias vezes sobre estas domingadas em família e vizinhos numa forma de confraternização à moda portuguesa com certeza!
Eram cozidos já famosos pratos incluídos nos cardápios brasileiros de restaurantes típicos lusitanos aqui no Brasil. Eram diversos legumes quase inteiros cozidos com músculo e paio numa harmonia deliciosa até para quem não comia verdura habitualmente.
A Bacalhoada era feita com esmero. O sal era retirado com bastante cuidado para que seu sabor ali conservado não fosse prejudicado durante o preparo. Claro que os bolinhos de bacalhau nunca faltaram à mesa, compondo inclusive a ceia natalina como prato principal junto com as rabanadas ao leite e ao vinho.
A macarronada feita no molho da carne, displicentemente temperada apenas com um ou dois tomates lançados divididos em quatro sobre a gordura da carne desfiada durante o cozimento bastava como tempero. Talharim ou espaguete, tanto fazia desde que nunca destroçados, pois assim virariam papas. O macarrão era cozido al dente, o suficiente para serem sentidos ao dente . As massas tinham que estar íntegras para que não se perdesse o efeito estético ao servir à mesa.
A Carne assada. Minha mãe me conta sobre o preparo da carne assada geralmente na comemoração do dia de Todos os Santos, do Espírito Santo, dia 1º de novembro: A Festa do Divino. Disse que nos últimos tempos, quando a vovó Luzia morava no Riachuelo, em uma vila típica daqueles tempos, naquele subúrbio do Rio de Janeiro, quando sentiam o cheiro daquela carne sendo assada, todos se acercavam e levavam um pedaço assim no garfo mesmo para aplacar-lhes a vontade enlouquecedora que seu sabor produzia.
A carne era uma alcatra inteira que passava por uma panela de barro grande cheia de vinho e alho por três dias dentro do forno. Dizia que a carne ia sugando o caldo e era “banhada em cruz” com novas misturas de ervas, vinagre, alho, cebola e vinho, claro. Depois do primeiro dia era cuidadosamente virada. O excesso do vinhadalho ia oxidando e era retirado com uma escumadeira cuidadosamente para de novo ser regada em cruz para maturar o tempero. Ali permaneceria até que finalmente fosse assada naquele mesmo forno. Batatas inteiras eram adicionadas a mistura para aplacar excessos do sal que porventura tivessem sido ultrapassados.
Enquanto escrevo chamei meu filho mais novo para confirmar que minha biblioteca está inundada deste cheiro de carne assada com batatas ou se eu percebo alguma forma pensamento materializando-se para dar vida ao relatado com tanto sabor por minhas recordações daquele tempo em que as crianças ainda cozinhavam suas folhinhas com florzinhas vermelhas dos flamboyants da vizinhança da vila esperando o brinde que sempre chegava antecipando o almoço que sempre era servido primeiro às crianças para que depois os adultos pudessem sentar-se em paz e degustar seu almoço com uma garrafa de vinho que não vencia a quantidade de historias e risadas por eles trocadas, muitas vezes na língua do “pê” para ocultar-nos o sentido picante por vezes.
A carne. Não posso privar-lhes do saber visual que aquela carne tinha. Ela era assada no forno por horas e horas, sempre carecendo de regas em cruz, cada vez mais freqüentes. Ela ficava negra por fora, meio que enfumaçada mesmo, e vermelha por dentro. Desfiava-se quase sem necessidade de que se utilizasse faca para o corte. As batatas eram retiradas antecipadamente para dar lugar às cebolas inteiras que poderiam ser degustadas por quem as preferisse. Não eram picadas devido a aversão que causavam a minha mãe que as odiava. Seu capricho sempre foi respeitado por toda a família. Em minha casa mesmo, nunca temperamos feijão nem arroz com cebola devido a esse capricho de minha mãe. Essas frescuras fazem parte de nossa família toda. Eu e Eliane temos aversão aos derivados do leite, quase que de modo geral. Minha filha Júlia não permite certos odores de comida fora de hora ou do local apropriados a sua ingestão. Minhas sobrinhas Bárbara, Juliana e Luciana têm uma preferência por alimentos esteticamente apurados. Meus meninos e sobrinho detestam verduras ou alimentos sem molhos.“Quem herda não fica na merda!”- como diria a D. Luzia.
Outros ditos mereceriam citação mas são tantos que inviabilizam todo o seu conteúdo. “Em casa onde falta o pão todos brigam e ninguém tem razão” seria um que deve lembrado às gerações futuras.
Um fado:
"Loucura"
Sou do fado! Como sei!
Vivo um poema cantado, de um fado que eu inventei.
A falar, não posso dar-me,
mas ponho a alma a cantar, e as almas sabem escutar-me.
Chorai, chorai, poetas do meu país,
troncos da mesma raiz, de vida que nos juntou.
E se vocês, não estivessem a mau lado, então, não havia fado,
nem fadistas como eu sou!
Esta voz, tão dolorida, é culpa de todos vós! Poetas da minha vida!
É loucura! Oiço dizer, mas bendita esta loucura, de cantar e de sofrer.
Chorai, chorai, poetas do meu país,
troncos da mesma raiz, de vida que nos juntou.
E se vocês, não estivessem a mau lado, então, não havia fado,
nem fadistas como eu sou! E se vocês, não estivessem a mau lado, então, não havia fado, nem fadistas como eu sou!"
Composição: Júlio Campos Sousa / Frederico de Brito