"Entre o puro e o profano- Um conto de família"
Entre o Puro e o Profano
Uma historia de minha avó Anita contada por minha mãe Luzia no dia 27 de fevereiro de 2008, na Barra da Tijuca, durante minha recuperação das fraturas da tíbia e fíbula. Resende, dia 06/03/11.
Mamãe dizendo: “Diziam de sua avó coisas relacionadas a um caráter ilibado dentro de um mundo ilícito. Nada deixava por suspeitar do relacionamento desta com suas “minina”. Ela quebrou a perna e fez muita amizade com os médicos que começaram a freqüentar sua casa. Ela contratava enfermeiras para cuidar de sua perna quebrada. Fez uma delas, a Darcléa , engravidar do seu pai, só para impedir nosso casamento. Nem compareceu a este, só de pirraça. Não queria que casássemos porque minha mãe era lavadeira. Minha mãe também não queria pois dizia que ela era ‘puta’”.
Chegou ao Rio aos 14 ou 15 anos, fugida de sua casa, onde dissera ter sofrido abuso por parte do patrão de sua mãe Ana, lá em Cachoeiro do Itapemirim.
Logo estaria grávida de seu primeiro e único filho, Clovis Dias Cardoso.
Foi trabalhar numa casa de família no Cachambi onde abandonou seu filho com aquela que se tornaria sua madrinha e segunda mãe, D. Juracy.
Depois que Anita se casou com um delegado de policia Sr. Manoel Joaquim Cardoso ela retornou ao Cachambi para buscar o filho, já com 7 anos que não resistiu aos apelos materiais. Dizem que foram várias visitas até que ele concordasse em ir morar com ela. Foram muitos presentes e finais de semana agradáveis com passeios à Quinta da Boa Vista em família. Ela havia montado sua casa na Maria da Graça onde começara a alugar vagas para moças, depois quarto, que finalmente, sobrealugava para encontros logo organizados por ela mesma.
Começou a ganhar muito dinheiro de bons ‘fregueses’, como dizia, que confiavam em sua discrição e capacidade de trazer belas mulheres para servir-lhes sexo dentro de uma sociedade àquele tempo onde os maridos estavam autorizados a ter uma “mulher na rua”, inclusive por suas próprias esposas. Eram oficiais da Policia, médicos, advogados, corregedores e empresários de renome no Centro do Rio de Janeiro. Mudou-se para a Rua do Resende e adquiriu imóveis pelas redondezas.
Tinha uma relação profissional com as mulheres de sua casa. Aconselhava-as a não usar drogas nem mesmo álcool. Levava-as ao médico para prevenção das DST, naquela época com difícil condição preventiva e orientava-as sobre não se submeterem a nenhum abuso extravagante que não fosse acertado anteriormente com sua agenciadora como passar finais de semana com os clientes, participar de bacanais ou fantasiar-se com roupas e fetiches sexualmente provocantes. Controlava inclusive sua intimidade, quantos clientes poderiam atender por dia e até que tipo de transa poderia ser permitido na cama.
Vovó Anita tinha uma relação quase familiar mesmo com aquelas meninas. Cuidava até de suas famílias, geralmente de fora do Rio. Dava-lhes presentes, aconselhava-lhes e incluía-as nos almoços familiares de domingos. Assim como elas também nos incluíam em seus passeios de visita aos transatlânticos, clubes da zona sul como Monte Líbano e Sírio- Libanês e presentes diversos contrabandeados no cais da Praça Mauá.
Tinha o momento profético também. Vovó jogava cartas onde os seus futuros eram adivinhados numa forma de lhes alertar onde estavam se metendo e se aquela paixão denunciada pelo oráculo lhes traria progresso na “vida” ou a derrocada da exploração por algum gigolô.
Vovó Anita lhes escolhia até o nome de guerra. Não admitia que freqüentassem outros bordéis como a Zona do Mangue da Praça 11 ou da Rua Alice, em Laranjeiras.
Minha primeira coca-cola, biscoitos e chocolates suíços. Relógios, xales, meias de nylon, baby-dolls, balas recheadas e bronzeadores “rayito Del sol” foram alguns dos mimos que eram distribuídos entre as meninas e repassados para as netas da D. Anita como forma de eterno agradecimento pela vida que elas tinham ali. Sentiam-se princesas e ter um apartamento montado por algum cliente ricaço, seria a única forma de “sair da rua”.
Tia Anita era uma mulher corajosa, negociava pessoalmente comissões aos policiais, destemida enfrentava os cafetões de suas mulheres e expulsava as oportunistas que só queriam aproveitar-se da sua casa para conhecer clientes milionários para depois montarem os seus próprios negócios. Ela era bonita, rápida, sagaz, inteligente e prendada. Tocava seu Acordeon Scandalli, de quatro baixos, com maestria de seu ouvido musical.
Ela nunca envelheceria, sabia-se disso há muito. Não seria dependente de ninguém. Nunca teve intimidade com ninguém, nunca namorou mesmo viúva, nunca mais engravidou após aquela gestação precoce. Ela contava que usava saia curta por falta de pano para fazer roupas mais compridas. Tinha uma historia de vida maior que o tempo disponível para contá-la. Mamãe a alfabetizou após seus 60 anos de vida, comemorados com um grande bolo feito e recheado por ela mesma. Ela só andava de taxi e sempre nos levava para comer pizza em Copacabana e um lanche na Confeitaria Colombo era algo comum inclusive com uma bandeja de doces com mil-folhas e bombas de chocolate, que ela mandava para o meu pai, sempre ausente destas cerimônias.
Nunca vi minha avó chorar. Nem mesmo quando passou mal e foi internada na Beneficência Espanhola sem nunca mais sair de lá. Desconfiou do diagnóstico e pediu para que fizessem sua sobrancelha, passassem batom em seus lábios carnudos e ajeitassem sua peruca para aquelas ultimas visitas e atitudes práticas a serem providenciadas.
Ela não conseguiu amar aquele filho. Dizia que gostava de menina e não de menino. Agradava-lhe que aprendêssemos música e pagou a Academia Mario Mascarenhas depois aulas da Dona Ada e do Professor Montenegro, em marechal Hermes, que dava as aulas a domicilio. Ela pagava por anuidade. Ela emprestara o apartamento para que morássemos por oito anos naquele bairro do subúrbio e depois nos trouxe de volta para residirmos no mesmo prédio que ela, na Rua Washington Luis. Depois ela adquiriu mais dois apartamentos e cedeu o seu apartamento para que morássemos, definitivamente.
Assim era a vovó. Morreu e foi enterrada com os seus próprios recursos.
Vendeu seu sitio em Teresópolis, no Bairro Meu Dom praticamente para ajudar sua neta mais velha a comprar sua casa. Dispôs daquela mobília para sua neta do meio que cursava Medicina em Valença. Apreciava a beleza e talento musical de sua neta mais nova. Amava como filha sua sobrinha Luzia Kátia, que continuaria com o seu negócio sem tanto talento e morreria de AIDS anos depois. Respeitava sua nora Luzia que educava suas netas e cuidava do seu filho com amor e garantia-lhe o conceito de família que a incluía socialmente.
Vovó Anita teve que dar um milhão de cruzeiros para comprar o silêncio do marido da Tia Luzia Kátia. Esta conheceu o Tio Anderson que pensava estar dando o golpe do baú mas estava era levando. A titia mudara a idade e o nome numa certidão providenciada pelos falsificadores da Praça Cruz Vermelha. Ela alterou sua idade em dez anos, não aparentava a idade que tinha. Este engodo era permeado de almoços e outras comemorações onde íamos com a família sem poder falar nada que transparecesse a verdade que veio a tona anos depois que titia teve a Cristiane, sua única filha. Era uma família da Rua Real Grandeza tão metida mas sem poder. Eles gostavam de ir lá em casa comer o feijão e a carne assada da minha mãe. Papai dizia serem mortos de fome e da burguesia falida. Bancavam mais do que tinham.
Certa vez minha avó foi denunciada e teve seu nome publicado na capa do jornal “O Dia”. Naquele dia eu pensei em fugir antes que alguém do meu colégio descobrisse que eu era neta dela. Eu tinha 15 anos, meu pai estava de cama por ter sido assaltado e baleado, o clima estava pesadíssimo em casa. Eu não queria ir para a escola, mas tinha, pois minha mãe estava agitadíssima entre cuidados com a hipertensão grave que vovó tinha, agravada pelo stress e falta de dieta. Fui ficar um pouco lá com ela e olhei aquela mulher se justificando que ela não aliciava nem corrompia ninguém mas sim fazia melhor por aquelas mulheres evitando que “dessem de graça” aos homens aproveitadores. Ela cuidava e era a sua família realmente, acreditava. Eu também acreditei.
Depois disso comecei a dar aulas particulares para prostitutas dentre as quais a Marlene, a que mais me impressionou por seu caráter e senso familiar. Ela tinha todos os vestidos praticamente com o mesmo modelo, que lhe realçava o corpo- decote em V e tubinho, variavam apenas nas cores e textura do tecido, desde linho até o lamê, desde o verde até o dourado.
A empregada da minha avó Anita chamava-se Nilda e tinha um mau humor conhecido por todos ali. Jamais sorria. Gostava muito de mim e até me deu seu filho único Marcio de Souza para ser batizado, fato que nunca ocorreu. Durante o meu vestibular eu o levei para ver o filme sobre o milésimo gol do Rei Pelé.
A gente viajava sempre nas férias com a vovó. Ela levava as meninas com a gente. Uma vez fomos a Ilha Grande onde conhecemos a “Madame Satã”. Ele nos levou ao baile do Presídio e a época ele ainda estava detido na ilha. Ele havia ficado conhecido pela sua força e que havia batido em mais de 20 policiais de uma vez só. Ele tocou acordeon para nós e fez sardinha frita em sua casa para receber-nos. Minha avó e minha irmã mais velha tiveram uma reação febril às picadas dos pernilongos daquela ilha que fez com que retornássemos antes da hora ao território. Eu e minha Irma mais nova rodamos toda a ilha e quase aprendemos a nadar. Remamos uma canoa que ficou a deriva e tivemos que mergulhar e nadar de volta a praia. Lembranças terríveis mas engraçadas, olhadas de longe.
Existem muitas outras estórias dentro da história que vivemos com a minha avó. Ela nos ensinou a por cartas, ela previa nosso futuro, ela morou em Copacabana, onde passávamos nossas férias, íamos e vínhamos sozinhas da praia, pulamos carnaval e nos fantasiamos junto com as meninas da casa dela. Freqüentamos o Cordão da Bola Preta com ela e seu grupo. Fomos a São Lourenço, Caxambu e Juiz de Fora diversas vezes. Aprendemos a jogar buraco e pôquer no Hotel Brasil, santuário dos Cassinos mais famosos do Brasil. Conhecemos a Gal, Carlos Imperial, Roberto Carlos, Erasmo, Tim Maia, Jorge Ben e diversos outros famosos que passaram pela sua casa.
Sua penteadeira ainda reluz no espelho toda a sua dinastia como dona de uma história daquela época do Rio antigo.
Nada como o tempo passando e deixando a nossa vontade a capacidade de recordar o bom do que foi vivido. Vovó sempre dizia-nos que queria muito ter a nossa idade com a sua experiência. Eu agora digo o mesmo dos meus filhos. Gostaria de saber o que sei hoje sem ter tido que passar mais de meio século de vida para isso!