O que nos dá Vontade de Matar
Por que transformamos pequenas coisas em casos de consciência, em lutas tribais, em disputas efêmeras? Os piores exemplos colhemos no trânsito e nas filas.
Certa vez, ao procurar uma vaga no concorrido estacionamento do Shopping, eis que surge uma na minha frente. Pacificamente me dirigi à mesma. Dei a seta e já manobrava de ré; um ás do volante tomou-a sem pestanejar, quase liquidando a lataria do meu veículo.
Transformei-me ameaçando transpor a tênue linha entre a barbárie e a civilização. Primeiro eu agredi a buzina com violência. Muitos rostos olharam. Saltei do carro e em brados retumbantes exigi a vaga que me pertencia. Meu nome gravado. O direito de vê-la antes, sacramentado pelo código das boas maneiras, era meu. O sujeito ignorou-me:
- Pressa! Foi o que gritou e saiu correndo em direção à porta de entrada.
Fui humilhado, derrotado e vencido. Meu lado negro dizia:
- Faça o seguinte: estaciona e depois volta e arranha a lataria do sujeito. Triunfei. Já podia ver o carro todo riscado. A pintura comprometida, um palavrão desenhado. Sorri por dentro. Estacionei. Meu anjo bom interviu:
- Vais negar então tudo no que acredita? E a história de virar a outra face, de pagar o mal com o bem? Por que não o perdoa? E se fosse contigo? Gostaria de ver seu carro arranhado?
Não risquei o carro, não agredi o sujeito. Carreguei minha ira por um tempo, perturbando a mim mesmo: um verdadeiro caso por nada.
Em outro duelo fui mais feliz. Fazia a compra semanal no supermercado. Já me encontrava cansado, pilotando o veículo. Era hora de encarar o caixa.Todos lotados. O mercado estava cheio.
Porém, um raio de luz desceu dos céus. Um caixa, poucos metros adiante abria. Ninguém percebera. Eu era o veículo mais próximo. Engano meu. Um sujeitinho bizarro. Cabelo em espeto, alguns chamam de moda, magrinho, cobiçou a mesma presa. Olhou-me. Viu que a preferência era minha, toda minha, desta vez seria aviltante. Mesmo que tal código não tenha ainda sido escrito, a distância e minha intenção eram claras. O primeiro lugar era meu, assim eu acreditava.
Ele disparou. Escancaradamente acelerou. Adiantou-se ao meu ataque e olhou-me em triunfo. Sabe aquela sensação do sangue ferver, dos olhos brilharem. De algo se apoderar de você? O bárbaro ameaçou dominar-me novamente.
- Mas o que você faz aí? Quem mandou entrar na fila? Saia já. Eu ainda não terminei. A mulher do meu rival intimava-o a ceder-me o lugar. Com o rabinho no lugar devido, ele me encarou e me fez lembrar da velha canção da “Blitz”, popular banda dos anos 80:
- Ok! Você venceu. Foi irresistível: eu abri o mais largo e triunfante sorriso da minha vida.
Mas nada se compara à vez em que eu estava no caixa rápido com minha esposa, poucos volumes, pressa de chegar em casa. Se o caixa é rápido, se está escrito: até 15 volumes, por que alguns insistem em enfrenta-lo com veículos abarrotados? Foi o que aconteceu. Bem à minha frente uma senhora postava-se com o carrinho cheio. Não se tratava de 18 ou de 19 volumes, mas de 50 ou 60. Indignei-me.
Eu decidi ser educado: exilei o bárbaro. Adiantei por três ou quatro cidadãos que nos separavam, com licença, com licença, e embora tão assombrados quanto eu, nada falariam. Trocavam olhares, mas mantinham o silêncio. Parece, no Brasil, que o hábito de lutar pelos direitos é mal visto. Herança inconsciente da ditadura? Tantos desaparecidos, tantos mortos, tantos calados a golpes de baioneta: a consciência do dever adormeceu, a do direito foi banida.
Não me fiz rogar:
- Minha senhora, por favor, este caixa é para menos de 15 volumes e o carrinho da senhora está com um pouco a mais.
- Ninguém liga, eles me deixam passar. O bárbaro voltou. Olhos brilharam. Minha esposa me conhecia bem. Sabia qual seria minha reação.
- Senhora, ou se retira, ou chamarei a gerência. Eu estou na fila ali atrás. Se existem normas é para cumpri-las...
- Eu não vou sair! Interrompeu-me.
- O gerente! Quero ver o gerente, comecei a chamar e fui andando em direção ao balcão central.
A senhora, que não era velha, chamo-a assim em sinal de deferência, saiu da fila e ao passar pela minha esposa dizia:
- Sempre tem um chato.
As outras pessoas da fila aprovaram-me com os olhos.
Inesperadamente eu vivi um bom exemplo. Novamente eu um caixa de mercado, uma senhora, esta sim detinha cabelos brancos e tudo, com apenas dois volumes, abordou-me antes que eu começasse a passar minhas compras, acompanhada por um homem:
- Meu filho, eu tenho apenas estes pacotes, posso passar na sua frente? Cedi a vez com o maior prazer. Enquanto ela pagava, notei que seu acompanhante estava ficando estranhamente vermelho, a ponto de ter um colapso. Ela notou minha reação, eu me preparava para alerta-la, calmamente explicou-me:
- Perdoe o meu esposo. Ele é sueco. Não está acostumado a essas coisas e me censura por ter tomado o seu lugar. Sorri em silêncio satisfeito por descobrir a real distância entre o Brasil e a Suécia, entre o bárbaro e o civilizado.
Por que transformamos pequenas coisas em casos de consciência, em lutas tribais, em disputas efêmeras? Os piores exemplos colhemos no trânsito e nas filas.
Certa vez, ao procurar uma vaga no concorrido estacionamento do Shopping, eis que surge uma na minha frente. Pacificamente me dirigi à mesma. Dei a seta e já manobrava de ré; um ás do volante tomou-a sem pestanejar, quase liquidando a lataria do meu veículo.
Transformei-me ameaçando transpor a tênue linha entre a barbárie e a civilização. Primeiro eu agredi a buzina com violência. Muitos rostos olharam. Saltei do carro e em brados retumbantes exigi a vaga que me pertencia. Meu nome gravado. O direito de vê-la antes, sacramentado pelo código das boas maneiras, era meu. O sujeito ignorou-me:
- Pressa! Foi o que gritou e saiu correndo em direção à porta de entrada.
Fui humilhado, derrotado e vencido. Meu lado negro dizia:
- Faça o seguinte: estaciona e depois volta e arranha a lataria do sujeito. Triunfei. Já podia ver o carro todo riscado. A pintura comprometida, um palavrão desenhado. Sorri por dentro. Estacionei. Meu anjo bom interviu:
- Vais negar então tudo no que acredita? E a história de virar a outra face, de pagar o mal com o bem? Por que não o perdoa? E se fosse contigo? Gostaria de ver seu carro arranhado?
Não risquei o carro, não agredi o sujeito. Carreguei minha ira por um tempo, perturbando a mim mesmo: um verdadeiro caso por nada.
Em outro duelo fui mais feliz. Fazia a compra semanal no supermercado. Já me encontrava cansado, pilotando o veículo. Era hora de encarar o caixa.Todos lotados. O mercado estava cheio.
Porém, um raio de luz desceu dos céus. Um caixa, poucos metros adiante abria. Ninguém percebera. Eu era o veículo mais próximo. Engano meu. Um sujeitinho bizarro. Cabelo em espeto, alguns chamam de moda, magrinho, cobiçou a mesma presa. Olhou-me. Viu que a preferência era minha, toda minha, desta vez seria aviltante. Mesmo que tal código não tenha ainda sido escrito, a distância e minha intenção eram claras. O primeiro lugar era meu, assim eu acreditava.
Ele disparou. Escancaradamente acelerou. Adiantou-se ao meu ataque e olhou-me em triunfo. Sabe aquela sensação do sangue ferver, dos olhos brilharem. De algo se apoderar de você? O bárbaro ameaçou dominar-me novamente.
- Mas o que você faz aí? Quem mandou entrar na fila? Saia já. Eu ainda não terminei. A mulher do meu rival intimava-o a ceder-me o lugar. Com o rabinho no lugar devido, ele me encarou e me fez lembrar da velha canção da “Blitz”, popular banda dos anos 80:
- Ok! Você venceu. Foi irresistível: eu abri o mais largo e triunfante sorriso da minha vida.
Mas nada se compara à vez em que eu estava no caixa rápido com minha esposa, poucos volumes, pressa de chegar em casa. Se o caixa é rápido, se está escrito: até 15 volumes, por que alguns insistem em enfrenta-lo com veículos abarrotados? Foi o que aconteceu. Bem à minha frente uma senhora postava-se com o carrinho cheio. Não se tratava de 18 ou de 19 volumes, mas de 50 ou 60. Indignei-me.
Eu decidi ser educado: exilei o bárbaro. Adiantei por três ou quatro cidadãos que nos separavam, com licença, com licença, e embora tão assombrados quanto eu, nada falariam. Trocavam olhares, mas mantinham o silêncio. Parece, no Brasil, que o hábito de lutar pelos direitos é mal visto. Herança inconsciente da ditadura? Tantos desaparecidos, tantos mortos, tantos calados a golpes de baioneta: a consciência do dever adormeceu, a do direito foi banida.
Não me fiz rogar:
- Minha senhora, por favor, este caixa é para menos de 15 volumes e o carrinho da senhora está com um pouco a mais.
- Ninguém liga, eles me deixam passar. O bárbaro voltou. Olhos brilharam. Minha esposa me conhecia bem. Sabia qual seria minha reação.
- Senhora, ou se retira, ou chamarei a gerência. Eu estou na fila ali atrás. Se existem normas é para cumpri-las...
- Eu não vou sair! Interrompeu-me.
- O gerente! Quero ver o gerente, comecei a chamar e fui andando em direção ao balcão central.
A senhora, que não era velha, chamo-a assim em sinal de deferência, saiu da fila e ao passar pela minha esposa dizia:
- Sempre tem um chato.
As outras pessoas da fila aprovaram-me com os olhos.
Inesperadamente eu vivi um bom exemplo. Novamente eu um caixa de mercado, uma senhora, esta sim detinha cabelos brancos e tudo, com apenas dois volumes, abordou-me antes que eu começasse a passar minhas compras, acompanhada por um homem:
- Meu filho, eu tenho apenas estes pacotes, posso passar na sua frente? Cedi a vez com o maior prazer. Enquanto ela pagava, notei que seu acompanhante estava ficando estranhamente vermelho, a ponto de ter um colapso. Ela notou minha reação, eu me preparava para alerta-la, calmamente explicou-me:
- Perdoe o meu esposo. Ele é sueco. Não está acostumado a essas coisas e me censura por ter tomado o seu lugar. Sorri em silêncio satisfeito por descobrir a real distância entre o Brasil e a Suécia, entre o bárbaro e o civilizado.