Crônic’achatada

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A modernidade fez de Teobaldo um sedentário em movimento.

Não discutirei o relativismo do famoso referencial Newtoniano[1] nem entrarei no cerne da questão levantada pelo homem que colocou a língua pra fora. Os cabelos assanhados do gênio[2], quiçá[3] em função de uma descarga elétrica despejada sobre ele ao manter contato com um condutor energizado, entraram definitivamente para o imaginário popular. O empresário Teobaldo, entretanto, amigo do halterofilista Selton, depois de muitos anos de cômoda situação como funcionário público, tornou-se homem de negócios, esquecendo quase tudo referente ao movimento dos corpos, inclusive o do próprio. Movimentos mais ousados apenas para degustar exóticos e requintados pratos nos restaurantes de luxo da Cidade de Priston – ele adorava elogiar o Tramps das Ostras, aconchegante sobrado à beira-mar.

O problema – o problema dele – é que tem viajado demais! Nos últimos seis meses, já deve ter dado a volta ao mundo em 80 dias, sem cortar caminho!

Nas idas e vindas, as paisagens (estáticas?), todas elas, ricas em policromias que variavam do cinza das cinzas dos incêndios florestais ao verde característico da pujante vegetação banhada pelas chuvas, contrastavam com o crescente e redondo bucho de um quase quarentão, finalmente nocauteado pelo tempo. A penugem lhe fugiu da cabeça... O noviço de outrora, agora era quase barrigudo e quase calvo, ou careca, ou pouca telha, ou aeroporto de moscas – nome não falta pra coisas feias inventadas e reinventadas pela natureza! O duro mesmo era ouvir da filha mais nova:

– Papai, como o senhor consegue ser tão magro e tão barrigudo?! – ouvir isso é o fim da picada! – comentava, angustiado, sempre que trocava duas ou três palavras com o amigo Selton, o bombadão do bairro.

O diferencial de Teobaldo, talvez, voltando ao tema careca, estivesse no brilho da testa. Apesar de nunca ter recebido nenhum tratamento à base de lustra-móveis (ele jurava isso aos amigos), o trem de pouso, aliás, a pista onde os pneus assentariam, eram de expressividade visual desconcertante. Nem a direção do movimento de plantas com elevada afinidade fototrópica[4] resistiria à atração.

A pressa, motivou-o ao stress precoce, afetando-lhe a memória recente. Não contava mais a vida em anos, mas em minutos. Para ele, o ocorrido no dia anterior tinha efeito de jornal velho – sabia da existência, que se relacionara a algo aparentemente importante, mas esquecido estava. Mesmo assim, tentava, em preto e branco, dar leves pinçadas de fatos curiosos ocorridos na última viagem que fez. Juntava os amigos e descarrilava o trem das estripulias:

– Olhem! É uma vaquinha sozinha, coitada! – disse nossa acompanhante, a carona. – iniciava.

– Ela se desgarrou da mãe. – respondeu minha esposa, solícita[5].

– Vamos voltar e pegar a bichinha!

– E fazer o que depois? Perguntar onde ela mora e deixá-la em casa? – respondi, sorrindo. – ele parecia criança peralta aprontando. O sorriso escapava-lhe pela boca, escorregadio.

– Nossa, como você é chato! A bichinha está perdida, não está vendo?

A 100 km/h, ao olhar pelo retrovisor novamente, nenhum sinal havia da pobre quadrúpede órfã. E a Zefinha tentando me fazer parar pra socorrer uma desconhecida, é mole? – outro sorriso. Teobaldo parecia em transe.

Tomando como ponto de partida a velocidade, nossa ilustre carona era tão sensitiva e arguta[6] – continuou – que conseguia identificar os passageiros dos carros ao cruzarem nosso caminho, embora estivéssemos a 100 km/h! Só no percurso de ida ela, por duas vezes, rompeu o silêncio da viagem, esbravejando:

– Olhem o carro da Quirina!

– Estamos a 100km/h, moça!

– E daí! Ela é a única na cidade que possui um Jeguesbur 2010!

– Estamos viajando, moça! Existem milhares de Jeguesbur espalhados pelo mundo...

– Era ela, claro que era!

Tentaram saber que outra intervenção a amiga tinha feito, mas Teobaldo, sisudo[7], recusou-se contar. Prosseguiu:

Minutos depois, noutra cidadezinha, iniciou-se uma chuva fina, mas constante. Minha esposa, atenta, percebeu bichinhos voando cruzando nosso caminho a todo instante:

– Interessante. Eles parecem voar em nossa direção. Ei, pare! Uma borboletinha. Ah, coitadinha! Ficou presa no limpador...

Parei. E lá se foi minha esposa socorrer a borboletinha amarela.

– A bichinha quebrou a asa e está com a perninha quebrada. (Borboleta tem perna? – pensei).

Os amigos de Teobaldo deliram com a perspicácia do narrador.

Minha esposa – continua – coloca delicadamente o animalzinho junto ao meio-fio da estrada. Instantes depois, quase infinitamente melancólicos, a constatação:

– Ela morreu!

Viajamos alguns minutos no tom plúmbeo[8] característico da morte. A paisagem aparentava concerto[9] com a tela celestial, brindando-nos com cinzento e pesado céu que nos acompanhava... (Em movimento?).

O dia na cidade para onde íamos não foi dos melhores. Problemas. Desacertos. Ao anoitecer, por volta das 23h, retornamos. Lá estavam os mesmos bichinhos, agora iluminados pelos faróis do carro, a nos perseguir:

– Eles parecem mesmo voar aproveitando a direção do vento – reiterou minha esposa. – Mulher é sensível demais! – Enfeita Teobaldo. – Eu lá tenho tempo pra divagar sobre que direção os bichos tomam! Pior ainda, tarde da noite! Queria era chegar a minha casa...

– Nossa! Eles ainda estão acordados a essa hora! – complementa nossa amiga, aparentemente assustada, lá do banco de trás. Lembram da Zefinha? Ela voltou com a gente. Eu achava que era apenas mala na ida, mas tive que conduzir a mala na volta.

– Teobaldo, você já tem é sorte! Depois conte a viagem com a sogra azucrinando o tempo todo por você não ter parado pra comprar a tapioca lá do Zé das bruacas pra velha comer. Aquela foi demais!

– Estrague a festa não, Iquinha! O melhor vem agora – disse o narrador, prosseguindo. – Na curva do Preá, aquela onde o Preá virou o carro lembra, Dutra? Exatamente na curva, minha esposa insiste na pendenga com os bichos. Pra tentar encerrar a choradeira, soltei essa:

– Aposto que os bichinhos, ao passarem por nós, também estão se perguntando: ‘Nossa, esse povo não dorme não?!’

– Nossa, digo eu! Como você é chato, homem de Deus!

Preparei-me pra responder. Seria grosseiro com as duas, principalmente com a acompanhante, mas outro acontecimento me fez agir como espectador. Noutra curva, enquanto descíamos um penhasco ao longo da estrada, um motoqueiro passa por nós. Difícil saber quem estava mais apressado. Zefinha, mais uma vez, lá do banco de trás, solta o comentário:

– Vocês sentiram o bafo de cachaça?

– Realmente, que cheiro forte e horrível! – comenta minha esposa.

– Que que foi? Vocês querem que eu acredite que sentiram o bafo de cana, de pinga braba... E querem me fazer crer que foi o motoqueiro quem soltou esse cheiro ao passar por nós, é?

– Você não sentiu, seu homem?

– Não! Já sei. O cara, ao passar por nós, levantou o capacete e deu uma golfada de cana justamente na cara de vocês! Olhou pras duas e soltou aquele arroto, numa baforada[10] cheia de desaforo! Foi isso? Ainda bem que falta pouco para chegarmos... Sei não, viu!

– Nossa! Como você é chato, homem!

Resolvi calar. E assim fiquei até abrir a porta do carro e convidar nossa terceira tripulante:

– Chegamos. Desce!

– Ei, Teobaldo, quando você vai mesmo começar a malhar?

– Sei lá, rapaz! Preciso mesmo é de férias.

Juazeiro do Norte-CE, 14 de dezembro de 2011.

21h47min

[1] De acordo com este princípio, referenciais inerciais são identificados pela propriedade de que compartilham as mesmas e mais simples Leis da Física. Em termos práticos, esta equivalência de referenciais inerciais significa que cientistas dentro de uma caixa movendo-se uniformemente não podem determinar sua velocidade absoluta por nenhum experimento (de outra maneira as diferenças possibilitariam determinar um sistema de referência absoluto). Na mecânica clássica e na teoria da relatividade restrita, sistemas inerciais podem ser identificados de forma muito simples, a saber, sistema inercial é aquele em que os símbolos de Christoffel, obtidos a partir da função lagrangeana, anulam-se.

[2] O texto faz referência ao físico teórico alemão radicado nos Estados Unidos, Albert Einstein. 100 físicos renomados o elegeram, em 2009, o mais memorável físico de todos os tempos. É conhecido por desenvolver a teoria da relatividade. Recebeu o Nobel de Física de 1921, pela correta explicação do efeito fotoelétrico; no entanto, o prêmio só foi anunciado em 1922. Seu trabalho teórico possibilitou o desenvolvimento da energia atômica, apesar de não prever tal possibilidade.

[3] Espanhol quizá, do latim qui sapit, quem sabe.

[4] Fototropismo: s.m. Movimento de crescimento de plantas, orientado sob a influência da luz: o caule tem fototropismo positivo. (Sin.: heliotropismo.)

[5] adj. e s.f. Que ou quem é cheio de delicadezas; cuidadoso; diligente, atencioso, prestativo...

[6] adj. De espírito vivo, penetrante, capaz de perceber com rapidez as coisas mais sutis. Afinado, canoro: voz arguta...

[7] adj. Que tem siso; que tem juízo; sensato; sério; prudente; circunspecto. S.m. Pessoa prudente, sensata, circunspecta.

[8] adj. De chumbo. Cor de chumbo.

[9] Harmonia.

[10] s.f. Expiração de hálito desagradável. Golfada de fumaça (de cigarro, charuto, cachimbo) expelida pela boca. Bafo prolongado e ruidoso.

Nijair Araújo Pinto
Enviado por Nijair Araújo Pinto em 07/03/2011
Reeditado em 25/08/2011
Código do texto: T2834031
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