Enchente de São José

Aqui pelas bandas do Planalto-Central, nesta época do ano faz um calor desgramado, a chuva ameaça, ameaça e quase não aparece.

Hoje comentei com uma colega de serviço, que nesta época é normal fazer muito barulho e pouca chuva. Ela me respondeu que não é bem assim, que podemos esperar por uma chuva forte, pois todo ano, esse período não fica sem uma grande enchente. A chamada enchente de São José. O comentário de minha colega fez sentido, pois conheço muitas histórias a respeito da tal enchente, e algumas eu até presenciei.

Não tem aquecimento global, não tem mudança climática: o fato é que dia 19 de março é dia do Santo que dá o nome a enchente: São José. E a enchente, é só esperar, que vem. Um pouquinho antes, um pouquinho depois, e algumas vezes, em cima da data. Se o Santo quiser, será assim também este ano, pelo menos é o que reza a tradição.

Nasci na beira de um córrego! Um córrego que leva o nome de Nossa Senhora da Conceição. Águas limpas e cristalinas que deslizavam e ainda deslizam calmamente por aqueles brejos. Em sua beira, passei boa parte de minha infância.

As enchentes mais fantásticas conheci através do relato dos mais velhos. Que repetiam a mesma história todo o mês de março, como uma espécie de alerta.

Córrego com nome de Nossa Senhora, e enchente com o nome de São José. Não sei se tem algo a ver, mas o fato que é o dia de São José que o Conceição demonstra toda a sua força.

Há alguns anos atrás, em uma certa tarde, o azulão da chuva estava na cabeceira do córrego, nem chegou a chover em nossa casa. Quando de repente, pode-se ouvir um barulho anunciando que a enchente havia chegado.

Era 20 de março. Como costume, meu pai apartava os bezerros, para poder ordenhar as vacas no dia seguinte. Os colocava em um cercado, perto do córrego, onde tinham sua aguada. Da janela da cozinha, viram que a água estava subindo rapidamente, ia alcançar os bezerros em pouquíssimo tempo. Meu pai conseguiu salvar alguns, mas outros, que estavam mais perto do córrego, já se encontravam ilhados, e seu pedaço de chão seco, ia diminuindo a cada segundo. Não dava para ir lá, seria arriscado. Na enchente, além da água suja, havia uma forte correnteza que arrastava tudo, desde galhos secos, até bichos peçonhentos que moravam na margem atingida pela enchente. Decidiram esperar, as águas poderiam baixar e todos seriam salvos. Mas isso não aconteceu. Da janela, viram a água atingir os pobrezinhos, que desesperados, se jogaram em meio à correnteza na tentativa de sair daquela emboscada. Não deu outra, foram levados. Metade da bezerrada estava indo embora na enchente. Eles não afundaram por completo, ficavam indo e vindo à superfície. Meu pai, que via o resultado de seu trabalho árduo ser levado pela enchente, decidiu agir. Em um instante, pegou seu laço, e foi para o fundo do quintal. Chamou todos da casa para ajudá-lo. Antes de fazer a curva, o córrego pegou um atalho, que ia dar bem na cerca da horta de minha mãe, que a essa altura tinha virado uma lagoa de água barrenta. A cerca era de tela, estava serviria de rede no meio da enchente. Os bezerros com certeza iam passar por lá e ficariam presos. Se posicionou bem na margem, e usou sua habilidade de peão laçador para pegar os bezerros presos na tela, e com a ajuda de todos, tirá-los da água. Viu que um laço não seria suficiente, gritou para que pegassem todas as cordas que encontrassem. E assim o fizeram. Ele foi laçando, e os outros puxavam. Com muito trabalho, conseguiram salvar grande parte da bezerrada. Alguns, impiedosamente a água levou, e nunca mais foram vistos, nem vivos, nem mortos. Outros aparecerem na fazenda do vizinho, que os devolveu , dizendo que os viu saindo do meio do lamaçal. Os que foram salvos, a laço, todos sobreviveram.

Enquanto estavam no canto da horta tentando salvar os pobres bezerros, a água atingiu a casinha do monjolo. Pendurada em suas paredes, estavam dezenas de novelos de linha de algodão retirados da roda de fiar, a água não os perdoou também. Além do monjolo, levou também as linhas, e as que restaram, de tão sujas e encardidas, viraram cordão para sacaria. Dias depois, alguns pescadores deram noticia do monjolo intacto, muitas braças córrego abaixo. Foram necessários, duas juntas de bois para arrastá-lo de volta. As linhas foram desenoveladas e viraram uma maçaroca entre a vegetação ribeirinha.

Desde então, não podia armar chuva para o lado da cabeceira do rio, que o alerta de enchente vindo de minha mãe, soava. O cercadinho dos bezerros, desde então, passou a ser em uma parte mais alta, longe do Conceição.

As enchentes que presenciei, foram mais amenas. Ela levou nosso cavalo preferido, que foi morto ao subestimá-la. Tentou atravessar e nunca conseguiu chegar do outro lado. E algumas pontes, que teimavam em construir.

Só para ficar registrado, estamos em março, e o que será que São José nos reserva para este ano?

Meire Boni
Enviado por Meire Boni em 05/03/2011
Reeditado em 26/11/2011
Código do texto: T2830260
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