Nas águas de março


     1. Eis que ali está o mar! Suas ondas avançam e se lançam sobre a praia com uma alegria incomum. Será porque hoje é sábado de carnaval? Foi a primeira coisa que pensei, quando, ainda muito cedo, abri a janela do meu quarto, e me reencontrei com o meu querido Atlântico, azulado, majestoso e cheio de sol.
     2. Sim, porque em Salvador, no carnaval, a impressão que se tem é que até o mar dança atrás dos barulhentos trios elétricos. E percorrendo a exuberante orla soteropolitana, desde quinta-feira, o que não falta são eles.
     3. É o trio da Ivete, é o trio da Daniela, é o trio do Chiclete com banana. E como disse o Caetano, atrás deles "só não vai quem já morreu".
     4. Uma vez, faz muitos anos, arrisquei uns pulinhos atrás de um desses colossais carros musicados, feericamente iluminados. Fui quase esmagado pelos foliões, a maioria "cheios de mé", como se diz na gíria. E nunca mais. Mas não há como negar: são os trios que fazem a festa.
     5. Longe do fuzuê - aqui na Pituba ainda não tem carnaval e por isso dou graças a Deus - resolvi passar o dia 5 de março homenageando um querido e saudoso poeta.
     Pus alguns dos seus livros na cabeceira de minha cama; e outros junto à minha redinha cearense, de balanço suave e acolhedor.
     6. E aqui estou a foliá-los lentamente, retornando, com satisfação imensa, àqueles poemas, versos e rimas que, já na primeira leitura, mais gostei.
     7. O poeta é o Patativa do Assaré. Se estivesse vivo, hoje, 5 de março de 2011, ele estaria completando 102 anos.
     Antônio Gonçalves da Silva é o seu nome de batismo. Patativa nasceu na Serra de Santana, a 18 quilômetros da cidade de Assaré, no Cariri cearense; e morreu no dia 8 de julho de 2002.
     8. Seus versos encantaram o mundo. É conhecido na França e até no Reino Unido.  Como a querer reafirmar a singeleza dos seus poemas, no seu livro Inspiração Nordestina, ele adverte:
         "Não vá percurar neste livro singelo
         Os cantos mais belo da lira vaidosa,
         Nem brio de estrela, nem moça encantada,
         Nem ninho de fada, nem chêro de rosa." 
     9. Quando menino, uma doença, no sertão chamada Dor-d´olho, cegou-lhe a vista direita. Mas como Homero, Camões, Jorge Luis Borges e Aderaldo, todos cegos, Patativa continuou versejando e ofereceu excelente contribuição à literatura brasileira e à poesia pátria.
     10. No cancioneiro popular, ele marcou presença. Dois exemplos: com A triste partida e com a Vaca estrela e boi fubá, versos musicados e cantados, respectivamente, por Luiz Gonzaga e Raimundo Fagner.
     11. Assim, enquanto a batucada rola solta na avenida, prossigo debruçado sobre a poesia do Patativa do Assaré; e esqueço tudo; até que hoje é o meu aniversário!
     12. Queria que a data passasse despercebida. 
 Mas, infelizmente, há sempre alguém de olho no dia 5 de março. Fazer o quê?
     13. É, meu caro amigo, mais um 5 de março!
     Oh! São tantas velhinhas a serem sopradas! Terei fôlego suficiente para apagá-las? Se, por acaso, o fôlego me faltar, pedirei a ajuda da Catarina, do Bernardo, do Davi e do Vitor, meus netinhos queridos...
     14. Mas continuando com o Patativa, mil vezes mais importante do que eu. Como melhor homenagear o poeta aniversariante? Já sei: recordando um de seus mais bonitos sonetos. Vamos lá.


               Engano

      Alguém julga-me sempre venturoso,
      Qual passarinho alegre a gorjear,
      Cheio de vida, de prazer e gozo,
      Entre as delícias de um amor sem par.

      Alguém pensa que eu sempre ao dedilhar
      O predileto pinho sonoroso,
      Sinto no peito o livre palpitar
      De um coração feliz, calmo e ditoso.

       Mas nada disso em meu viver existe,
      Vou pelo mundo, pensativo e triste,
    Vergado ao peso da cruel saudade,

      Sempre arrastando o meu martírio infindo,
      Chorando o tempo que passei sorrindo
      Nos belos sonhos da primeira idade.

      Ora, alguém ao descobrir este soneto, nele se encontrará...
      15. Obrigado a quem, pelo menos hoje, se lembrar deste cronista pífio, cada vez mais "vergado ao peso da cruel saudade"... de tudo e de todos.
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 05/03/2011
Reeditado em 05/11/2019
Código do texto: T2829737
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