Infância
Infância
(*) Texto de Aparecido Raimundo de Souza.
“Tanto vai a nada a flor que um dia se despetala.”
Guimarães Rosa
Quem poderia imaginar uma loucura dessas? Eu desejava plantar uma semente de urubu no fundo do quintal lá de casa para ver se nascia uma ave igual às muitas que avistava da janela do carro de papai, quando ele vinha me buscar no final de semana, para eu ficar com ele em seu apartamento, na capital. Há curto tempo, ele havia se separado de mamãe e, desde então, passei a dividir as loucuras do vaivém incessante, entre a cidade barulhenta e a roça, esta despojada dos espetáculos que enchiam meus olhos de menino a uma semana no albor dos oito anos.
Tinha verdadeira adoração por meu pai. Ele era o meu herói de todas as horas. O homem forte que lutava com dragões gigantes e vencia as batalhas mais difíceis e impossíveis. Pouco acima da linha dos 30, profissional conceituado na firma onde trabalhava, procurava manter o ritmo de antes, quando ainda vivia com a gente. Não deixava me faltar nada. Do computador moderno ao celular de última geração, do brinquedo mais sofisticado aos jogos de vídeogames recém-lançados no mercado; sapatos e roupas com as assinaturas das melhores grifes. À mamãe, também fazia graças elegantes, marcando presença constante. Não porque quisesse tê-la de volta, em absoluto.
Simplesmente seu coração era grandioso demais e o amor que nutria por nós ultrapassava os limites do mensurável.
Quando o questionava sobre morar novamente embaixo do mesmo teto, ele, muito polidamente, ficava em silêncio. Um silêncio que chegava a ser constrangedor. Despistava, mudava de assunto e, por fim, para não me deixar totalmente sem resposta, inventava uma desculpa esfarrapada, mas que, bem sabia, não convencia meu ego interior, sedento de alguma coisa mais concreta.
Eu era uma figura esguia, porém franzina e tímida, alvo fácil dos guris mais corpulentos, que, vez por outra, inventavam de querer esperar por mim na porta da escola, para me descerem a lenha nos costados. Me chamavam de “galinho rico”, porque a melhor mochila era a minha, como a calça do uniforme e o tênis. Enfim, implicavam até com a merenda que eu levava na lancheira. Por isso, tinha raiva deles, um ódio mortal, um sentimento que, se pudesse ser posto à prova, aniquilaria a todos só com a força do pensamento.
Quem sabe fosse essa a razão maior de eu querer plantar uma semente de urubu lá nos fundos do terreno de casa. Se pudesse comandar a ave, como num jogo, certamente não pensaria duas vezes para ordenar que arrancasse o couro daqueles molecotes desgraçados e depois deixaria que o bicho devorasse suas carnes fedorentas até atingir os ossos. Não sabia, claro, que os urubus não matam, apenas se alimentam de carniça. E mais: desconhecia o princípio da vida. Eles não nasciam de sementes jogadas à terra, como se fossem plantinhas caseiras que floresciam e se tornavam adultas com o passar dos dias. O processo era um pouco mais complexo, e a sua formação estava muito aquém dos meus conhecimentos limitados.
Mas o dia de hoje tinha um motivo a mais para ser comemorado. E não somente pelo fato de papai ter vindo me buscar na roça. Uma satisfação profundamente marcante regozijava meu mundo de criança mimada: o aniversário dele. Essa data não poderia passar em branco. Mamãe, dias antes, comprara um presente requintado para que lhe fosse dado. Nunca me senti tão próspero — apesar da pouca idade —, tão orgulhoso de mim, em poder retribuir à altura tudo de bom que recebia daquele homem de cabelos cortados à militar, vestido a rigor, impecável em ternos de linho, com motorista particular que abria e fechava as portas do carro e fazia reverências engraçadas.
E mamãe? O que dizer dessa mulher maravilhosa que preenchia o meu outro lado? Se papai era o corpo sólido, ela, evidentemente, se constituía no espírito materializado, na beleza angelical e pura, na santa que venerava todas as horas, de modo incansável. Mamãe, era como uma bebida gostosa, um vinho raro e doce que embriagava os lábios. A fruta apetitosa que saciava a fome, a zelosa que distribuía carinhos e atenções especiais. Entretanto, com todos esses atributos, mamãe não passava de uma criança abandonada. Às vezes, eu sonhava que ela havia sido deixada por alguém que eu não distinguia bem a fisionomia. Seriam os pais dela, meus avós maternos? Ou será que ela não conhecera, ou mesmo, não tivera os pais? O fato é que a via dentro de um cesto, largada à sorte, abandonada ao relento, à frente de uma casa humilde e de um bando de transeuntes que passava ao largo da rua e lhe virava o rosto, indiferente à sua solidão.
Embora lutasse para parecer alegre, no fundo algo me dizia que um vazio muito grande embaraçava seus passos. E por que se separou de papai? Por quê a vida deles, a dois, não deu certo? Dava vontade, às vezes, de sentar em seu colo e perguntar, indagar, conversar como adulto, como gente grande. Contudo, nas poucas oportunidades em que ensaiei partir para o assunto, ao me aproximar, sentia-a temerosa, intranqüila, afogueada, tal como uma dessas muitas criaturas que vivem pelas ruas, perdidas, vegetando a contragosto, presas a esmolas e restos de comidas, como mendigos nas sinaleiras.
Agora, esperaria a hora oportuna para entregar o presente. Mamãe fizera uma manobra rápida para que o embrulho em papel vermelho com um laço discreto chegasse ao porta-malas sem que papai desse conta. Foi fácil. Não enfrentamos embaraços. Do nosso lado, dando uma força, o bondoso Eugênio, o motorista. Assim que saímos, vi pelo retrovisor que me dera uma piscadela, acompanhado de um sorriso de cumplicidade.
Finalmente chegamos à capital. Amava o burburinho dessa metrópole gigante, os ônibus, as pessoas de um lado para outro, atormentadas com seus afazeres. Semáforos demorados, a fila interminável de automóveis de todos os tipos e cores, buzinas, gritarias, a vida fluindo rápida, engolindo os minutos. Num dado momento papai se virou para meu lado e perguntou:
— Com fome?
Balancei a cabeça afirmativamente. Algumas quadras a frente, paramos num restaurante em que já havíamos estado anteriormente uma dezena de vezes. Uma moça solícita, logo que reconheceu papai, veio ligeira, ao nosso encontro, abrindo passagem e indicando um dos imensos salões luxuosos. Assim que nos sentamos à mesa, e depois de pedido meu prato preferido (o garçom sabia de cor, nunca mudava), disse que precisava ir ao banheiro. Uma mentira convencional. Na verdade, corri para os fundos do prédio onde havia uma saída para o estacionamento.
Eugênio, em pé, ao lado do carro (como a me esperar) se apressou a abrir o porta-malas e de lá me ajudou a retirar o misterioso embrulho. Quando retornei, papai falava ao celular, de costas para mim. Fui me aproximando, devagarinho, pé ante pé, a respiração contida, um sorriso largo, o coração batendo acelerado.
— Pai!
Ele se virou, interrompeu a ligação com um “Te ligo depois”, se levantou, colocou o aparelho sobre a mesa, abriu os braços e caminhou ao meu encontro. Dois passos, apenas.
— Campeão, o que é que temos por aqui?
Acocorado, me beijou longamente a testa.
Naquele instante, todos os que estavam acomodados em mesas à volta, pararam para nos observar. Ouvimos, de repente uma aclamada salva de palmas. Se tivesse combinado com alguém, aquela recepção momentânea, certamente não teria dado tão certo.
— Por essa seu pai não esperava. A cada dia você me surpreende. Obrigado, filho.
Fez uma reverência com a cabeça, em agradecimento às palmas recebidas, e, em seguida, voltamos a nos sentar. Antes do primeiro gole de refrigerante, enquanto desembrulhava a enorme caixa com a velocidade febril que atropelava a sua idade, me virei para ele e comecei a falar. Tudo o que havia em volta da gente me dava a impressão de estar em estado de suspensão, de enlevo e de graça. Eu sentia que os pratos, os copos e os talheres postos sobre a mesa vibravam com a nossa presença.
— Queria dizer uma coisa — falei com efusão —, mas não sei como começar. Só sei que amo muito o senhor e quero que o senhor nunca se esqueça de mim.
Papai se deixou envolver, encantado pela felicidade que sentia. Capturei duas lágrimas rolando pelo canto dos olhos, escorrendo, ligeiras, por sobre as maçãs do rosto. Parecia embalado por um doce acalento, ao tempo que lutava, com todas as forças, para fugir de lembranças e melancolias amargas que o definhavam interiormente. Nesse instante, embora não entendesse muita coisa do mundo dos adultos, vi, diante de mim, um homem forte, mas sozinho; senhor absoluto de si, mas desprotegido; dono da verdade, mas amargurado; desorientado no espaço, como se tivesse perdido a noção do essencial e se sentisse, por isso, preso nos laços do impenetrável de seus pensamentos mais lúgubres. Recordo que não consegui conter a emoção e me abri num choro soluçante que demorou a passar. De súbito, ele deu comigo a observá-lo. Nossos olhos se encontraram, ele se perturbou. Constrangido, vacilou, ameaçou baixar a cabeça, mas acabou sustentando o olhar e enfim se abriu num sorriso mágico.
— Você será sempre o meu campeão. Não importa quanto tempo passe, jamais deixarei de amá-lo. Você foi, é, e será sempre o presente mais bonito que recebi lá do céu. E sabe de uma coisa? Só posso agradecer à sua mãe por isto e também por este momento. Acredite, meu filho, ele será eterno.
Após essas palavras, me abraçou novamente e tomou as minhas mãos entre as suas. Até hoje, tantos anos depois, guardo, ainda, dentro de mim, o encanto e a magia daquele instante, como se fosse único e verdadeiro. Aliás, foi realmente único e verdadeiro, puro, como seu gesto bucólico de pegar as minhas mãos e de aninhar minha cabeça contra seu peito, e eu me lembro que me senti feliz e seguro – seguro e feliz - ouvindo as batidas descompassadas do seu coração.
(*) Aparecido Raimundo de Souza, 57 anos é jornalista