Saudades de mim 14. O "nono" morreu!
-O nono morreu! O nono morreu! Acordamos assustados com os gritos, era um primo meu que viera no meio da noite avisar que meu avô havia falecido. Levantamos amarfanhados e seguimos para a casa de meu avô na noite escura, por um trilho no meio do pasto. Meu pai ia na frente com um lampião de querosene para iluminar o caminho para não tropeçarmos nalguma cobra e minha mãe ia chorando muito pois o "nono" era o pai dela. Eu e meus irmãos íamos assustados, quase correndo para poder acompanhar os passos largos de meus pais, com medo da escuridão que nos rodeava e ao aproximarmos da casa ouvimos o choro e o lamento da família que diziam a nos ver: Foi de repente! Ele trabalhou o dia todo, jantou e foi deitar-se e acordou com fortes dores no peito! O médico foi chamado, mas a vila era longe e quando ele chegou meu avô já tinha falecido e foi dado o veredicto: Angina, morreu de angina, e explicou para a família o que era a tal de angina e montando seu cavalo foi-se embora. Foi uma comoção geral, pois meu avõ era muito estimado e mal clareou o dia começou chegar gente para o velório que naquela época era feito em casa. Vinha gente de perto e de longe. Os de longe chegavam à cavalo e os amarrava na cerca, a frente da casa ficou repleta de cavalos, burros e mulas. Um tio meu já tinha ido na vila para encomendar o caixão e a mortalha. É naquela época fazia-se mortalha para os defuntos e até davam banho neles, e com água morna! Quando meu avô já estava banhado e amortalhado, com um lenço branco amarrado no rosto para a boca não abrir, ele foi colocado no caixão em cima da mesa da sala, uma mesa comprida, de madeira rústica, com velas ao redor. Minhas primas colheram jasmins do pequeno jardim e enfeitaram o caixão, que era muito feio, todo prêto, mas a mortalha era roxa e brilhante, muito linda! Os bancos e as cadeiras foram colocados encostados na parede para o povo sentar. A casa logo ficou cheia de gente, os homens chegavam respeitosos, segurando os chapéus na altura do peito, aproximavam-se do caixão, olhavam pensativos por algum instante e iam sentar nos bancos e cadeiras enfileirados junto a parede da sala e como alí todos se conheciam teciam comentarios. Falavam que meu avô era novo e forte. Assim tão de repente.! Difícil de acreditar! Inda ontem eu o vi passando a cavalo indo prá vila! Outro dizia: A poucos dias eu conversei com ele, tava tão"sacudido"! E sentenciavam: É amigo, nesse mundo nós não somos nada mesmo, hoje tamo aqui, mas amanhá, quem sabe? É a vida! As mulheres aglomeravam-se no fundo da sala e na cozinha e as vezes o cheiro de café que era passado lá na cozinha, invadia a sala e misturava-se com o cheiro de vela e jasmim na sala calorenta e as moscas preguiçosas voejavam de lá prá cá, as vezes pousava nas pessôas e as vezes no véu que cobria o rosto de meu avô. Como chegava muita gente, os homens saíam prá fora procurando a sombra das árvores e na roda de homens que se formava, falavam do defunto, tecendo elogios e depois mais descontraaídos falavam do tempo sêco que estava atrasando o plantio, do preço do café que caiu, do leite que diminuiu, da lavoura esturricando com tanto sol, da carestia e de repente apareceu na roda um garrafão de pinga e todos tomavam um pouco prá "beber o morto" numa única canequinha de ágata verde,toda esfolada. E na cozinha as mulheres tomavam chá de erva cidreira para acalmar. Lá no fundo do quintal, no curral as vacas e os bezerros mugiam desesperados, pois foram esquecidos apartados. Dava dó de ver, até que alguém foi lá solta-los. E o dia passou, calorento, com crises de choro e lamento, principalmente quando chegava parentes de mais longe. Vieram primos de longe que eu nem conhecia ainda, mas apesar das circunstâncias logo fizemos amizade e começamos a brincar, no começo meio constrângidos mas logo caimos na maior folia subindo nas árvores, brincando de "pega" correndo atrás dos porquinhos que eram tão bonitinhos, mas ariscos e gritões que só vendo! Os patos, as galinhas e os perús também eram perseguidos. De vez em quando entrávamos suados e sujos para dar uma espiadinha no "nono" e se alguém chorava e se lamentava a gente chorava também, mas logo voltava a brincar no terreiro como se estivéssemos numa festa. No meio da tarde chegou o caminhão que ia levar meu avô prá ser enterrado numa cidade próxima e destampou uma choradeira na hora da despedida. Nessa hora eu chorei, não pelo meu avô, mas pela dor das pessôas que se lamentavam e perguntavam:- Porquê? Porquê? Porquê? Eu não sabia porquê, mas chorei também. Eu estava lá me acotovelando no meio da perentela quando minha máe veio me buscar para despedir do "nono", disse que eu teria de beija-lo, pois era a última vez que o víamos e eu tive de ir a contra gosto. Foi muito ruim beijar aquele rosto amarelo, frio e petrificado. Muito ruim! Acho que não se deve obrigar criança fazer isso. Depois das despedidas o caixão foi fechado e colocado na carroceria do caminhão, meus tios, meu pai e alguns conhecidos subiram para acompanhar e o caminão partiu devagar, aos solavancos na estrada de terra poeirenta. O resto da família ficou lá, inconsolável, chorando e lamentando e aos poucos os vizinhos e conhecidos foram saindo pesarosos e tristes. Uns iam pela estrada à cavalo ou à pé, outros iam pelos trilhos no pasto e de vez em quando alguém suspirava e dizia: Um homem tão bão, fortão, morrer assim de repente! Outro dizia: É compadre, prá morrer basta estar vivo! Quem sabe o dia de amanhã? Hoje foi ele, amanhã pode ser um de nós, ninguém fica prá semente. É a vida! outro sentenciava: A morte é a única certeza que nós temos na vida! E seguiam cismando, cada um para sua casa.
Naquela semana meus tios foram na vila e compraram uma peça de tecido preto e foram feitos vestidos para as mulheres e camisas para os homens e nas roupas que já tinham foi colocado uma tarja de tecido preto. Acima de doze anos todos usaram luto fechado por um ano. O luto era guardado nas roupas e no coração, sem festa , nem o rádio era ligado. Desse dia eu não tenho saudades.