Eu Só Queria Ser Criança



A mãe vai buscar o filho no colégio em meio ao agitado cotidiano.

A vida da criança é pautada por uma agenda digna de
um executivo de uma multinacional.

O menino tem apenas seis anos de idade.

Fernando - grita a mãe.

Vamos! Você está atrasado para a aula de futebol.

- Mais mãe,  me deixa ficar conversando um pouco como
Eduardo - retruca o menino.

De jeito nenhum - diz a mãe já meio que sem paciência.

Percebendo que perdera a partida o pequeno obedece a mãe
cabisbaixo.

Sem dar ou receber um beijo entrou no carro.

- Meu filho preste atenção na aula, você precisa ganhar o campeonato - disse a mãe no meio do som infernal do
Cd que ouvia no carro sempre repleto de objetos pessoais.

Quando se virou viu que o pequeno adormecera.

Meia hora depois pára em frente à escolinha de futebol.

- Desce rápido que estou atrasada - fala a mãe já acelerando
o carro para sair.

- Mais ma ... ma... mãe....

Tarde demais - a mãe arrancou velozmente.

Decorridas duas horas, lá vem ela novamente ( com muita pressa, como sempre), buscar o filho.

Sem beijo e sem perguntar como foi o jogo.

- Entra rápido no carro, estamos atrasados para a aula de inglês, diz para o menino parecendo estar no automático...

Novamente Fernando adormece no banco do carro.

Poucos minutos depois desembarca meio tonto em frente
à escola de idiomas.

A mãe, como faz de modo habitual arranca em disparada.

Quase sete da noite vai buscar o filho ( com pressa como sempre).

Sem dar ou receber beijos ordena que ele entre rápido no carro.

Mal estaciona aterroriza o pobre menino.

- Nada de chegar e ir brincar viu! Tarefa entendeu?

 
Vai, vai logo fazer a lição.

O menino cabisbaixo obedece.

Enquanto estuda sozinho  a mãe se entrega ao computador.

- Mãe, eu quero comer, diz o menino.

Espere seu pai chegar - responde sem erguer a cabeça fixa
no teclado.

Exausto e sem um tempo sequer para brincar, esperou pelo jantar até o pai finalmente chegar.

Passava das dez da noite, tard demais.

O menino adormecera sobre o prato vazio...

No dia seguinte, a mesma rotina.

Às vezes que o pai chega mais cedo, se enfia no escritório ou na leitura dos jornais - sempre são muitos.

A mãe sempre apressada cobrando e o pai sempre muito ocupado lendo o noticiário.

Tem sido assim desde que  o menino completou três
anos de idade.

A agenda semanal inclui: duas aulas de inglês, duas de futebol, duas de reforço, uma de judô, duas de música e uma de mangá.

O menino não respira.

Percebe-se um ótimo aluno no entanto,  solitário.

Recebe todo tipo de informação, porém os pais deixam a desejar na formação no quesito amor.

Talvez imaginem estar construindo um robô de última geração.

Só que o menino tem apenas seis anos de idade.

Um quarto repleto de brinquedos sem ter com quem brincar.

Cobranças diárias quanto ao rendimento de todas as atividades que participa.

Um inferno.

Quem constrói robôs não consegue preparar gente.

Filho precisa sim de informação e mil cursos, de limites e educação também.

Porém, tudo isso cai por terra se na formação faltar o amor
o diálogo, o exemplo e o carinho.

Até os dez anos de idade as crianças obedecem, se submetem.

Após esta idade vem o retorno.

Desespero dos pais como se a criança tivesse culpa, quando na verdade as mudanças de comportamento nada mais são do que fruto do descaso, do apego às famigeradas competições, do excesso de tarefas e atribuições.

A pressa, a ausência de afeto - o pai omisso na paternidade e a mãe só na cobrança.

O " robô" quer e precisa ser gente, porém não está preparado.

Tarde demais para rever o quadro.

Aproxima-se o dia da Criança.

O pai libera o cartão de crédito para a compra de mais um brinquedo caro, que sem dúvida alguma se juntará aos outros que Fernando tem e não brinca.

Nem prestou atenção quando a mulher falou do valor.

Estava enfiado na leitura dos jornais.

- Fernando - gritou a mãe.

Amanhã você sai rápido da escola que eu vou te comprar o presente do Dia das Crianças.

E não se atrase - emendou.

Na saída, o menino entra no carro, a mãe ao volante sequer
lhe dirige um olhar afetuoso, afinal está com pressa.

Uma vez mais Fernando adormece no banco de trás.

Chegam ao Shopping.

- Não quero descer - disse o menino.

Meu filho desce logo, viemos comprar o seu brinquedo.

- Não vou descer e pronto, disse chorando copiosamente.

- Cooooooooooomo!

Gritou a mãe enfurecida.

Seu pai dá o dinheiro para comprar o brinquedo que você quiser, paga nove cursos para você, te compra tudo do bom
e do melhor e você agora vem fazer manha?

Não acredito - continuou.

Desce e pronto,  eu é quem mando!

O menino temeroso desce do carro todo encolhido
chorando copiosamente dizendo para a mãe soluçando: mãe....

- Mãe eu não quero brinquedo.

A mãe sem entender o que o filho dizia, repetiu a gritaria.

- Mãe, me deixa falar - pediu o menino pela última vez.

Ta bom, então fala - disse a mãe cansada de esbravejar, ( e apressada como sempre) , sem dar um beijo .

- E fale logo, engole o choro que estou com pressa.

- Mãe, sabe o presente que eu quero?

Faaaaaaaaaaaaala, moleque, fala.

O menino cabisbaixo com os olhos marejados, disse em tom quase que inaudível:

- Mãe, eu só queria ser criança. (Ana Stoppa)
















 
Ana Stoppa
Enviado por Ana Stoppa em 01/03/2011
Reeditado em 11/10/2013
Código do texto: T2822572
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