Outra vez

Tento adormecer, ou faço de conta que tento há um bom tempo, a madrugada está em seu ápice de escuridão, me quarto, entretanto, claro. Deixo a luz acesa, esta escuridão me desagrada, bem como aquilo que ela trás consigo; em qualquer outro momento não ousaria admitir, mas aqui, enclausurado comigo mesmo, posso dizer que temo a ausência da luz. Da cabeceira da cama, apanho um maço quase vazio de cigarros mequetrefes, risco um fósforo na parede áspera e o acendo. Tusso com a primeira tragada, faz pouco tempo que adquiri este hábito, fato que foi tão inusitado para mim, quanto para o resto do mundo. Tornei-me grande apreciador dele, não tanto pela fumaça cáustica que preenche meus pulmões, mas por poder segui-la, subindo em padrões aleatórios, em uma série de espiraladas colunas cinza até o teto do quarto, me distrai, esqueço do resto.

Ouço um zumbido incômodo, encaro a TV que permanece ligada. O som que perturba, é oriundo sabe-se lá do quê, visto que o aparelho está mudo, um programa que já assisti pela tarde se repete. Alguém poderia se perguntar o motivo de se deixar uma televisão, sem som, salvo um incessante zunido, que reprisa algo que já fora maçante da primeira vez, ligada. Ora, é simples, faço isto a fim de afastar de mim a solidão atroz que me assola, aqui no quarto, na escuridão opressiva da madrugada. Esfrego os olhos, que parecem salpicados com pó de vidro, cuidadosamente deponho o cigarro pela metade num recém adquirido cinzeiro, e rumo à minhas estantes, onde diversos volumes repousam alinhados com perfeição. Mas não é pelos livros que me levantei, apanho a garrafa que deixei em uma delas, procuro um copo que deveria estar por perto, mas que aparentemente cansou-se de mim e evadiu-se para pastos mais belos. Pro diabo com o copo, tomo um gole direto do gargalo, sinto uma agradável queimação em meu interior, agradeço à bebida por ser capaz de apaziguar o frio que me permeia, mesmo num dia quente de verão. Dirijo-me de volta para a cama, tropeço em algo e vejo o copo a troçar-me. Rio de mim mesmo, e com um leve movimento de pé descalço rolo o copo para debaixo da cama, quero vê-lo fazer gracinhas outra vez. Sento-me numa velha cadeira, com a garrafa pela metade numa mão e o cigarro a verter adocicada fumaça na outra, e assim, parecendo uma ode aos bons vícios, passo a ponderar. Sobre tudo, sobre nada.

Encaro os vários pertences que entulhei entre estas paredes, e imagino se seria possível fazer um juízo apurado de mim apenas os analisando, como fazem naqueles programas de encontro às cegas. Sempre achei isto uma babaquisse, o tesouro não faz o dragão, do mesmo modo que minha alcova não reflete minha pessoa, pelo menos não inteiramente. Sorrio ao lembrar de certa vez, em que entrei no quarto de certa garota, o recinto tomado por uma legião de animais de pelúcia, almofadinhas coloridas, fotos bonitas de gente feliz em porta-retratos decorados com flores. Parecia o quarto de uma recatada menininha de onze anos, ninguém que entrasse naquele aposento seria capaz de imaginar que ela era, como tive o prazer de descobrir, qualquer coisa menos uma jovenzinha, pura e ingênua. Claro que não nisto como algo a se repudiar, repreender ou coisa que o valha, muito pelo contrário. Suspiro a fim de afastar as lembranças e o pesar, tomo outro grande gole em uma tentativa de apressar este processo, a bebida como sempre, me afaga gentilmente. Meus cotovelos repousam sobre minhas coxas, seguro a garrafa com ambas as mãos, meu rosto mira o chão; um cansaço súbito toma conta de mim. Meio zonzo tento alçar-me em pé, acabo conseguindo, chacoalho a cabeça, como um cachorro a se secar ou alguém que levou uma pancada na cabeça, sorvo mais da bebida, muleta dos aleijados emocionais, e um par de passos depois, encontro-me em frente à janela.

Separo as cortinas e me deparo com o breu, que é ferido pela parca luz emitida pelas lâmpadas dos postes, pequenos e bravos bastiões da claridade, cercados por negrume infindo. Continuo a beber, agora sem mais medir ou contar os goles, sem mais pensar em nada. Largo ao abraço da noite sem fim tudo, fica comigo somente a embriaguez e uma tristeza lacerante da qual jamais consegui me desvencilhar. Tamborilo com os dedos da destra o parapeito, a TV ainda ligada emite imagens que se refletem no vidro sujo da janela, vejo um carro que passa, um cão que late, a neblina em torno dos minúsculos sóis que fingem iluminar algo. Vejo, ouço, sinto, isto e muito mais, entretanto, mesmo em meio a esta miríade de sensações, em meio a tanta coisa, permaneço sozinho, eu, a bebida, e minha tristeza.

Pietro Tyszka
Enviado por Pietro Tyszka em 01/03/2011
Código do texto: T2821860
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