Maria Glória

Quando escutei, pertinho do meu ouvido, uma voz baixa, quase sussurrante, me perguntando se podia sentar no banco ao lado do meu, senti que minha paz escorregava pelo meio-fio do asfalto.

Me ajeitei melhor na poltrona, escorei a cabeça na janela, fechei os olhos, prá deixar bem claro que deseja viajar em recolhido silêncio.

Creio que nem havíamos saído da rodoviária, e já senti um braço se encostando em mim, um vira-de-cá, vira-de-lá, um mexer-se sem fim, me arrepiando até os ossos a perda da paciência.

Mas, durona, fingi que já estava dormindo...

Eu tinha observado atentamente, pela janela do ônibus, um senhor bem alto conversando vários minutos com o motorista do ônibus na fila do embarque.

Enquanto ele falava meio baixo, o motorista do ônibus confirmava com a cabeça e por fim colocou as mãos nos ombros do homem dizendo:

- Fica tranquilo, vai dar tudo certo !

Aquele "fica tranquilo" é que me inquietava agora que sentia o movimento incessante na poltrona ao lado.

E não demorou muito o movimento ganhou voz. Baixa, quase sussurrando:

- Você está viajando prá onde??

- Hum?

- Você vai até o fim da linha?

- Não!

- Ah!

E sossegou.

- Graças a Deus ! pensei aliviada.

Por meio segundo...

- Vai até Apiúna?

- Não!

- Ilhota?

- Não! respondi já impaciente.

- Ah! Mas então vai para Blumenau ! concluiu mais prá si do que prá mim.

Fiquei calada, e, com um suspiro de alívio pelo silêncio que se estabeleceu, tornei a fechar os olhos.

Deixa pensar o que quiser, quem sabe agora sossega o facho e me deixa viajar em paz...

Paz, que não durou um minuto:

- Será que eles tem câmeras instaladas aqui? me perguntou enquanto os olhos vivazes percorriam o teto e as janelas frontais do ônibus.

- Não! Não tem! respondi quase me engasgando de raiva pois já estava invadindo minha poltrona, apoiando a mão em minhas pernas, prá espiar a janela lateral.

Era só o que me faltava - eu pensei - vou ter de sair de minha poltrona preferida e procurar outro lugar no ônibus...

E já ia me preparando para levantar quando disparou o gatilho do " - Misericórdia, meu Deus !" ao ouvir o absurdo:

- Mas com certeza eles devem ter colocado uma filmadora aqui dentro sim! Dias atrás não é que desconfio que colocaram uma dentro do meu quarto? Decerto mandaram instalar para ver se eu estava dormindo bem...

E:

- Você não se importa de se levantar um pouquinho só para que eu possa dar uma olhada na sua poltrona???

Palavra que até hoje eu não acredito que levantei...

- Pronto! Já pode sentar. "Tá limpo!" como dizem os jovens! Não tem nada!

Nessa altura do campeonato eu já olhava espantada prá figura ao meu lado. Pequena, magricela, cabelos até nos ombros, cacheados, olhinhos redondos e brilhantes, um sorriso franco a me desarmar, que me dizia ter sido ela no passado a força propulsora do lar...

Diante da carinha ansiosa e feliz que me olhava, não tive outro jeito que não baixar a guarda...

- A senhora não precisa se preocupar. Eu entrei bem antes no ônibus e já averiguei tudo. Não colocaram filmadora nenhuma aqui dentro.

A curiosidade era grande prá saber porque ela estava preocupada com ter uma filmadora no ônibus, mas perguntar de que jeito???

- Que bom! Agora posso viajar tranquila.

- Sim! Pode viajar tranquila sim!

Bom, pelo menos "ela" podia...

- Você vai para Blumenau não é? Sabia que eu já fui professora lá?

- Não, não sabia!

- Fui sim! Fui professora no Machado por mais de 30 anos. Até me aposentar.

(Estava explicado o jeito correto de falar - a pronúncia perfeita e inteira das palavras)

- E agora a senhora mora em Florianópolis ou Blumenau?

- Em Florianópolis! Na casa ao lado da casa do meu filho. Ele me trouxe até a rodoviária. Estou indo para Blumenau visitar minha filha mais nova e meus netos que residem lá.

- Ah!

- Eles são tão inteligentes. E tão lindos! Tem os olhos da mãe! Os meus netos...

- Com certeza devem ser ! eu disse. Em minha memória dançava a imagem do filho que a levou na rodoviária.

Então arrisquei perguntar:

- Por que a senhora estava preocupada se teria uma filmadora no ônibus?

Ela se inclinou bem perto de mim e falou baixinho em meu ouvido:

- É que agora sou uma aposentada. E ouvi o Lula dizer na TV que precisamos cuidar dos nossos aposentados. Olhar mais para nossos aposentados. Saber como eles estão... Como eu nunca vi ele olhando para mim, imagino que para saber como estou, o que faço, deve colocar uma filmadora em tudo que é lugar... para não escapar nada sabe?

Meu coração se encolheu dentro do peito de compaixão. Ela já estava numa idade onde a fantasia se misturava com a realidade...

- Sei! O Lula seria capaz mesmo de colocar uma filmadora prá cuidar dos aposentados brasileiros. Seria sim! disse eu num meio sorriso...

- Por mim ele que me filme. Mas eu só gostaria de saber se estou sendo filmada ou não.

- Por que? Isso muda alguma coisa?

- Muda sim! Porque se eu souber que estou sendo filmada não posso ficar falando tudo o que penso. Porque o Lula não ia gostar e eu iria acabar sendo presa...

- Mas o que a senhora pensa é tão grave assim a ponto de merecer cadeia?

- Não é que é grave! Mas é que é contra o governo sabe?

- Ah! Sei! Sei!

- Eu não concordo com essa política, com o jeito de governar do Lula! Acho que ele está gastando dinheiro demais em benefício próprio. Sabia que ele aumentou o salário de todo mundo que trabalha lá no Palácio do Planalto? A tal máquina do Planalto que tanto falam na TV.

- É, eu ouvi falar. Mas isso todo mundo sabe. É divulgado em tudo que é lugar.

- Mas que eu sou contra isso não é divulgado em lugar nenhum. Porque tomo muito cuidado quando falo...

- Sabe que a senhora tem razão? Não vale a pena se estressar em ficar gritando aos quatro ventos o que a gente pensa. Não vai mudar nada...

- Muda sim minha filha, muda sim! Mas não gritando em qualquer canto. Eu falo assim, de pessoa para pessoa.

- Ao pé do ouvido...

- Isso! Só para quem eu acho que vale a pena!

- Obrigada por achar que eu valho!

- Ah! Mas eu logo vi pelo seu jeito calmo que você seria alguém com quem eu podia falar o que eu penso...

Pronto! Ela já tinha me conquistado!

E assim, Maria Glória e eu, passamos o resto da viagem cochichando coisas e mais coisas que pensávamos à respeito da política, da vida, da família, da educação, do universo.

Várias vezes ela tinha seus rompantes de misturar a realidade com a fantasia, com sonhos, com fantasmas de outro mundo... mas quem não faz isso também?

Eu, Maria, hoje e lúcida, misturo meus sonhos com a realidade toda hora... que dirá quando chegar perto do porto do cabo da boa esperança...

18/09/2009

Maria
Enviado por Maria em 28/02/2011
Reeditado em 28/02/2011
Código do texto: T2820113