Eu, tu e você
Outro dia lendo poesias de amor no “Recanto das Letras”, deparei-me com um comentário feito por alguém sobre o problema das pessoas. O comentarista fazia os elogios de praxe ao poema e depois acrescentava, certeiro, que a autora devia tomar cuidado com a questão da mistura das pessoas, não embaralhar a segunda com a terceira pessoa. Cuidadosamente, para não melindra-la, iniciou a crítica com um solene “se me permite...”.
Sempre soube que não de devem misturar pessoas em cartas, por exemplo, tu, com você, com vós. Mas achava, na minha santa ignorância, que os poetas estavam liberados de tais minúcias, principalmente os que amam. Qual o quê! Há uma legião de vigilantes da correção, de leais defensores da língua pátria, de sorte que tais comentários amiúde aparecem.
De repente, pus-me a escrever um português castiço, que estou até a estranhar-me, estou almejando atingir o estado de um Francisco Coimbra, ou de um Henricabilio, não fosse pelo gerúndio que me traiu, no último momento.
No caso da poetisa comentada, como a tenho em alta consideração, saí em sua defesa e “tasquei” o meu comentário: “se me permite, estou vendo no seu texto apenas duas pessoas; a terceira sou eu que estou lendo...”.
Depois, refleti que os defensores do rigor da língua, provavelmente têm razão. Eu, por exemplo, tenho muitas dificuldades com vírgulas; mudanças ortográficas são uma tortura, pois quem estudou pela antiga ortografia, não consegue se atualizar. Quando fiz o primário, que, aliás, se chama agora ciclo básico, me disseram que “toda” tem acento para se diferenciar de um pássaro que há em Portugal. Acreditei, fixei, e depois retiraram o acento. Será que o pássaro foi extinto pela caça predatória? Quando nos ensinaram os números, disseram que o sete deveria ser cortado. Um mês depois, a professora vem com a novidade: o sete não mais precisa ser cortado por um traço... A regra foi alterada. Eu, que levo tudo ‘a sério, não aceitei, continuo cortando o sete até hoje. Acre, Rondônia, Amapá, não são mais territórios, o Mato Grosso e Goiás foram divididos, boa parte do meu conhecimento, conseguido ‘a duras penas tem que ser descartado em função das mudanças.
Mas, não é esse o assunto, e sim o “tu/você”. Fiz uma pesquisa breve nos poetas consagrados para verificar se eles misturam o tratamento. Não, não misturam. Os portugueses, de jeito nenhum, usam o tu e o vós, nem sinal do você. Vinícius de Morais, a mesma coisa. João Cabral de Melo Neto, português perfeito, para ele não existe o “você”; Cassiano Ricardo, nada, perfeição. Bem, parece que a coisa é séria. Estava convencendo-me, até chegar ao meu querido Carlos Drummond de Andrade e... Mistura, sim senhores, Carlos Drummond de Andrade mistura o tu com o você. Salvo pelo gongo.
Penso que a mistura de tratamentos é um problema que afeta aos cariocas. No sul e norte, o povo se tuteia até a exaustão. Mas no Rio, não. Aqui se mistura “tu com você”, “nós com a gente”. O preferencial é “você”, mas se “eu tiver que dizer que te amo, direi te amo”, porque lhe amo fica horrível.
Assim, senhores, perdoem-nos, aos cariocas e afins pela embrulhada poética, mas creio que continuaremos misturando.
ENLEIO
Que é que vou dizer a você?
Não estudei ainda o código
De amor.
Inventar, não posso.
Falar, não sei.
Balbuciar, não ouso.
Ficar de olhos baixos
Espiando, no chão, a formiga.
Você sentada na cadeira da palhinha.
Se ao menos você ficasse aí nessa posição
perfeitamente imóvel, como está,
uns quinze anos (só isso)
então eu diria:
Eu te amo.
Carlos Drummond de Andrade
“Esquecer para Lembrar” Boitempo III, Rio de Janeiro, 1979, pág. 60.