Fluxo

As malas já tinham sido colocadas no carro quando ela chegou trazendo o último item da mudança. O recipiente de porcelana florido estava bem seguro na mão da filha enquanto esta se apressava em se encontrar com o marido do lado de fora do prédio. “Tem certeza de que só falta isso?”, ele perguntou. “Tenho”, ela respondeu. Depois de trancarem o apartamento e se despedirem da rua, entraram no carro e seguiram rumo ao futuro.

Ela, a filha, cantarolava uma música conhecida que tocava no rádio do carro enquanto o seu marido prestava atenção á estrada. Para ele não era fácil dizer adeus para a cidade grande, pois ali tinha construído uma vida de sucesso, gerado lucros. Já para ela era a realização de um sonho. Não um sonho só seu, mas que um dia havia compartilhado com os próprios pais. A casinha de campo que antes os havia acolhido ainda estava à espera dos velhos hospedes. O pequeno riacho que corria no bosque ainda estava lá também, fluindo, levando suas águas ao infinito. O velho pai também os esperava, enterrado em um cantinho ao lado do fluxo do riacho, onde descansava em paz enquanto o resto da família não voltava.

A paisagem a volta do carro mudava a cada instante: os prédios da cidade davam lugar aos campos, que por sua vez se fechavam em lindos bosques floridos. O passado ia ficando para trás, e o futuro se construía. No meio da viagem a mulher perguntou: “Acha que seremos felizes na casinha?”. Ele, cansado, só conseguiu responder: “Sim, querida”. Feliz, ela apertou com força o recipiente florido contra o colo, protegendo-o. Fechou suas mãos sobre a tampa de porcelana impedindo que o conteúdo se lançasse para fora com o balanço do carro.

A estradinha de terra dava boas vindas ao casal, que já avistava a casinha e seu bosque ao longe. Não demorou muito e logo chegaram. O marido a ajudou com as malas, descarregando-as no gramado verde ainda vívido. A porta de madeira gasta da pequena casa estava destrancada. Levaram tudo para dentro antes de retornarem ao aberto céu ao entardecer. Ela ainda trazia o recipiente florido nas mãos. Juntos eles seguiram, em silêncio, rumo ao velho bosque que brilhava á luz da alvorada. O riacho, como sabiam, estava lá, refletindo o dourado do céu. Ao lado de seu fluxo estava o pai, enterrado sob a terra fértil. Olhando para aquele canto, a filha disse: “Papai só vai quando eu for”. O marido assentiu e a olhou com admiração, encorajando-a.

Ajoelhando-se ao lado do fluxo do riacho, ela tirou a tampa do recipiente florido e, de mão dada com o marido, despejou seu conteúdo nas águas que brilhavam. Com os olhos cravejados de lágrimas ela disse: “Descanse em paz, mãe”.

E realizou seu sonho.

Jeff Pavanin
Enviado por Jeff Pavanin em 27/02/2011
Reeditado em 09/03/2011
Código do texto: T2818397