Sobre o tempo de perder.
As pessoas perdem diariamente: neurônios, células, cabelos, unhas, papéis, bilhetes, máscaras, memórias... Perdas banalizadas no amontoar das agendas que remontam tão pouco o contar dos danos absolvidos. Um dia perdemos as chaves de casa e nos pegamos com aquela sensação estranha de ter inaugurado, sem querer ou esperar, uma avalanche ininterrupta de perdas cotidianas: lá se vão os documentos, a hora do almoço e a hora de dormir, a hora de brincar com os filhos, de ligar pra amiga que está de cama com febre, de escrever um bilhetinho de amor pra pendurar na geladeira. Com a geladeira vazia por fora e por dentro, perdemos a alquimia de preparar nosso alimento, perdendo também a mesa e a conversa na varanda, na sala, no quarto. Conversaremos com banheiros, apertados de preferência, solitárias testemunhas das nossas ansiedades claustrofóbicas. E a passos rápidos perderemos um dia a e-terna-idade do chá que nunca marcaremos. Porque teremos passado anos a fio, ferro, fogo e açoite, perdendo um tempo danado investindo toda quantia recebida no final do mês nos pagamentos do começo do mês: para os bancos, para os impostos, para as contas a penar. E quantas a-pesar! E paranóicos trataremos de fazer cópias das chaves, das fotos, dos documentos, dos corpos com os quais deitamos. E nos preocuparemos em ganhar mais dinheiro para não nos preocuparmos em perder tanto dinheiro. E esqueceremos tudo que for de constrangimento com o tempo futuro para repetirmos tudo de novo e não pensando em nada, nada criarmos a respeito... Pequenas perdas visíveis se atrelam a um tempo imediato: “aquele” que não se quer perder, mas já perdido está: estamos sem tempo! E é claro que nos denunciaremos de quando em quando, lembrando uma, duas perdas, ou melhor, esquecimentos...nossos. Uma humanidade inteira de esquecimentos. Uma História inteira.
E é certo que perderemos ao longo da vida bens de um mundo concreto e excessivamente real, perdendo objetos, coisas que se gastam pelo uso e até pelo bom ou mau abuso: brinquedos, cartões, cartas (se os enviarmos e recebermos algum dia, é claro), perderemos bugigangas, bibelôs, meias, livros, luvas, guarda-chuvas... Guarda-chuvas... Em algum lugar, no mundo do excessivamente imaginado, deverá existir um reino de afeto para os guarda-chuvas perdidos, esquecidos nos bancos das praças, nos lugares a ermo, nas calçadas, nos chafariz tomando banho, nos sinais equilibrando malabares.
Um dia acordaremos velhos e teremos perdido o primeiro amor... E como será difícil perder! Dor no peito, sofreguidão que parece eternizar as horas, os minutos longe do ser adorado. E logo aprenderemos que doer não é somente parte do crescimento. Doer é o próprio crescimento e aprenderemos – às vezes no susto - que dói mais perder pessoas que coisas e que pessoas não são coisas. Não servem para qualquer tipo de uso ou abuso. Uma aprendizagem que para alguns começará muito cedo, até mesmo antes do nascer da vida ou do dia. Mas que para outros começará tão assustadoramente tarde que mal haverá tempo desprendido para a descoberta de uma compreensão mais profunda de mundo.
Dizem os mais antigos que algumas pessoas nasceriam com maior propensão a perdas que outras. Seria uma questão de destino, estrela, sorte ou devaneio de quem diz: nasceu “voltado” pra lua. O certo mesmo é que ninguém, nenhuma pessoa humana passará pela própria vida sem nunca perder algo ou alguém – seja por destino, livre arbítrio, resignação ou desejo. A gravidade, bem, a gravidade só saberá quem viver e quem viver viverá. Existem conjunturas as mais diversas e até algumas esquizofrênicas. Às vezes se chega ao auge, ao topo da montanha, da colina ou de uma escada, quando, de repente, sem que se noticie, lá no esconderijo do sótão se encontra em estado escondido uma perda imensa que se aloja na mente e no coração sem qualquer justificativa, ocupando espaço demais. É um imprevisto de existir. Vive-se então o conflito de uma felicidade vazia. Como quando entramos nos casarões antigos, bem mobiliados, limpos e nos cantos nos deparamos com ratoeiras à espreita querendo ferir a frágil existência do rato, o rato de Clarice.
E não será também o rato que se espera prender e amordaçar com medo e vingança parte de uma perda ulterior? Tanto ódio sangrará o rato? Matará o rato? O cadáver do rato quebrará nossos espelhos? Ou serão nossos os dedos presos e decepados pelas ratoeiras? Mas dizem também os antigos que quando se vão os anéis, os dedos, esses ficam. Os dedos que vamos perdendo das mãos. Para que mãos se elas não nos servem para o artesanato de afagos, preces e acenos?
Assim como é dito no belo poema de Elisabeth Bishop há uma arte de perder: perderemos cidades, rios, continentes inteiros. Perderemos o sotaque e a gente que morava com a gente, a gente que reconhecia a gente na rua, a gente que abraçava a gente por nada, de graça: nas brincadeiras de roda, nos encontros entre amigos. Perderemos e não daremos conta do risco e do riso. Se uma alegria é uma ação única e irrecuperável, a memória, mesmo a dessa esfumaçada alegria, é nada mais que o vestígio, a pétala seca do que um dia foi vivido.
Não precisamos de tantos acúmulos. Imprecisamos. E as perdas fazem parte do que somos. Há perdas precisas e até preciosas – como lágrimas, sorrisos, a separação decorrente da liberdade de quem se ama, o crescimento absurdo dos filhos, os frutos que amadurecem e as nossas raízes, que quase sempre tortas, depois de viverem todas as suas estações se vão para o dentro delas. São perdas, partos, despedidas que trazem à tona o nosso departamento interno de “perdidos e achados”.
Perdemos chaves, óculos, carteira, o trem fantasmagórico das coisas, um porão de lembranças e urgências para as traças. E se o mundo for mesmo acabar pelo aviltamento dos corações como professou Baudelaire, talvez possamos ainda nos empenhar um pouco mais no zelo de nossas mãos para além da arquitetura das lutas e das ratoeiras. Dedilhar os dedos de outras mãos, quem sabe... atravessando a rua e o tempo.
Patrícia de Cassia Pereira Porto