O perfume da tia Hilda
Chovia docemente naquela noite. Uma chuva tão fina e tão preguiçosa, que mal conseguia molhar as plantas do jardinzinho da frente da nossa casa, ao lado da bela escadaria centenária.
Era uma destas noites cálidas de verão, e tudo pode acontecer no encanto destas noites frescas, quando a chuva vem deliciar os nossos corações.
"E doce a chuva na cidade", como dizia Verlaine. Ah! Os poemas de Verlaine!
Aconteceu-me estar ouvindo um disco de Billy Eckstine, gravado nos anos trinta ou quarenta, creio. O fato é que a musica, a voz doce e aveludada de billy, me tomava toda atenção.
De repente, uma fragrância maravilhosa entra pela minha janela, toma o meu quarto, penetra na minha alma e me joga no passado, nos tempos da infância e encantamento: Recordo!
“Tia Hilda”, irmã da nossa vizinha mais querida tinha vindo do rio de janeiro, e se apaixonara pelo Sr. Lauro, uma criatura de certos encantos, que vendia bilhetes da loteria mineira.
Era belo vê-los já na idade madura, de mãos dadas, namorando pelas ruas da minha cidade de interior.
Ela era o encanto. Tinha o sorriso e a graciosidade que toda mulher apaixonada possui. Eu a amava ternamente como uma verdadeira tia, e adorava a dama que havia tomado aquele corpo frágil, mas encantador, que eu tanto admirava.
Certa tarde me pediu para lhe comprar alguma coisa que não me lembro. Prontamente eu fui, feliz em agradá-la. Demorei um pouco, pois conhecia todo mundo, era muito querido e falante. Quando voltei para entregar a encomenda, ela estava no quarto se enxugando e vestindo a roupa para namorar seu príncipe. Quando ela veio me receber, trouxe consigo perfumando as mãos, um aroma que parecia vindo do céu, dos jardins do paraíso. Elogiei a sua elegância e o perfume que me encantara, e ela me disse que o mesmo havia se acabado, e que era uma fórmula oriental, que compraria outro, assim que voltasse ao rio de Janeiro. Subitamente, voltou ao quarto e trouxe o frasco dentro da embalagem e me deu de presente, para eu brincar, certamente.
"O vidro era feito do mais fino cristal. A tampa era de madeira e se enroscava a ele, e era pintada com uma tinta que parecia feita de ouro, um primor. Este conjunto era guardado dentro de uma embalagem de madeira escura, que me parecia ser cedro do Líbano. Artesanalmente feita, emoldurava o vidro , elegantemente, algo do mais requintado bom gosto".Tia Hilda, não sei porque, não se casou com o Sr. Lauro e não voltou mais à minha cidade, mas bastava tocar no vidro levemente que a minha mão ficava perfumada. A caixa que guardava o vidro ficara impregnada do perfume. De tanto bem proteger o vidro o capturara para si.
Durante muitos anos me lembrava dela pelo seu afeto, e porque gostava de apreciar aquele perfume, o melhor que eu conheci.
Quando meus pais mudaram muitas coisas se perderam ou dadas, junto, a embalagem perfumada.
Não sei em que lugar da alma são guardadas as lembranças!
Olho pela janela por onde entra o perfume: Recostada no muro que protege a escadaria, vejo uma criatura belíssima, encantada. Ouvia a musica que saia do meu quarto quase escuro. Discretamente volto ao meu lugar. Não queria incomodar aquele belo anjo pensativo. Sabia que ela estava ali, pelo aroma que continuava a entrar pela casa.
Em um determinado momento, tive que virar o disco de vinil. Neste curto espaço de tempo, volto à janela e vejo-a descendo, elegantemente, as escadarias e tomando a rua.
Nunca tinha visto antes aquele ser que parecia ter surgido dos tempos antigos. Nem voltei a ver aquela criatura evanescente que se fundiu no passado, na época do encanto e da graça para me dar de presente o perfume que encantara a minha infância: O doce perfume da Tia Hilda.
Dedicado às mulheres de 43 anos, de bênçãos agraciadas.