O Coração Rifado de Clarice Lispector
      
       Acho interessante certas culturas atribuírem a alguma parte do corpo uma função nobre que, com todo respeito, só é proveitosa se for pensada e agida pela inteireza do corpo. Se tudo realizado com a participação do corpo inteiro, seria mais bem pensado e vivido, enfim, melhor coparticipado. Imagine assim, caro leitor, o verbo amar plenamente sentido por dentro e por fora, por cada membro do corpo. Por que privar o corpo das suas partes? Haja vida até nas suas extremidades, nos dedos, também nas compreensíveis orelhas, nunca em detrimento da destemida língua. Algumas religiões tentaram castrar, pudica e moralmente, das zonas erógenas, os órgãos sexuais. Se, na imagem da prudência, o macaco exclui os ouvidos, antes, haveria tapado os olhos e a boca ou, quem sabe, desejou, com apenas duas mãos, tapar tudo ao mesmo tempo.  Sempre é melhor, como na teoria da corporeidade, fazer o corpo participar de tudo.
       Mas, por que atribuir a alguns órgãos responsabilidades, quando tão somente a eles elas não competem? Imagine se a cabeça pensasse caminhar sozinha, aonde iria sem pescoço e sem pernas? Por isto, Paulo de Tarso, comparando sua Igreja a um corpo, considera cada membro indispensável a esse corpo; ainda, pede não agirem sozinhos e se tratarem com o máximo de respeito. Contudo, a boca seja boca; os olhos, olhos. Mas, por que somente ao coração o dever ou o prazer do amor? Ou o sofrimento? Até os futebolistas discriminam: “Sofre, coração!” O Mestre usa sabiamente partes do corpo nas suas parábolas: “A lâmpada do corpo é o olho”; que “estejam cingidos os vossos rins...”; que “não saiba tua mão direita o que dá a mão esquerda”; e “onde está o teu tesouro, aí estará o teu coração”.
       Adormeço, com a mestra Clarice Lispector, decepcionada, oferecendo-me o bilhete: “Rifa-se um coração”. Garante Clarice que é um coração quase novo, idealista, bom como poucos. Porém, moleque, usado, machucado, ainda sonhador e cultivador de ilusões. Mesmo tendo vivido tantas experiências, inconsequente, leviano e precipitado, “nunca aprende... não endurece e mantém sempre viva a esperança de ser feliz”. Um coração que, errando e insistindo no erro, perdeu o juízo, chegou à loucura de comandar o racional, convenceu a escritora revelar segredos, liberando-a para as mais loucas paixões. Que a razão não desconheça: seu coração tem razão, provocado, incompreendido, assim, recorre a impensadas emoções. Parece até “um órgão abestado”, aceitando que ela o troque por outro. “Cego, mudo e surdo”, ele não vê, nem fala, nem ouve. Mas, consente publicar confidências. Ninguém foi sorteado, mas quem ama a crônica e a poesia sempre ganha o coração rifado de Clarice.