Sobre a piedade, e seus problemas com o espelho
Já me desacostumei a dar de cara com o espelho. O espelho do banheiro já quebrou faz tempo. Já nem vale mais fazer das tripas coração. Das tripas, fazer rins, desenvolver novos pulmões. Do coração fazer migalhas, fazer pano de chão.
Tanto vale o empenho quanto o descaso. Os dois somariam um nada infindável, não fosse o acréscimo das horas passando, lentas ou velozes, de punho em punho desta caçada indígna. Os bastardos se vêem próximos ao terror eloquente, da ausência sem sentido, do nada que cresce, mais rápido que eles, mais rápido que a luz. Diante dos olhos. Os olhos do espelho que não está lá.
Quanto valeria então? O tempo somado para admitir novas vidas, quando estas em si serão tragédias...quando estas acabarão pior do que começaram. Oriundas da maternidade imunda, provenientes de uma união desprovida de sentido, de sentir, de bem estar. Términas em desespero. O meu desespero, o nosso. Vendo levados de nós o que conquistamos com esforço, vendo esvair-se a vida do mais fraco e mais vulnerável. Indo terminar assim, sem rédeas. Abandonadas por aqueles que foram mais espertos que nós, que ocuparam cadeiras acima das nossas, que construiram grandes instituições como esta onde nascem os bastardos, para ao morrerem, terem seus nomes estampados em suas fachadas. Abandonadas foram todas essas vidas, por aqueles que apenas fingem se preocupar. Por nós, não há mais nada. Há um depósito bancário, não há paixão. Há interesse à esmo, em casos peculiares que despertam essa pseudo-compaixão existente em cada ser humano. Compaixão fictícia. Valores morais obrigatórios, herdados de quem também nunca os praticou de fato. E onde vai parar todo esse empenho? Onde vai parar todo o progresso? O que começa como custo adicional, como peso morto, se tornará, à medida que cresce, um peso-estorvo. Uma ocupação desnecessária de espaço, arrisco ocupação perigosamente predatória de espaço. O peso que cai sobre nossos ombros, nossas conciências. O custo benefício que sai do meu dinheiro, do seu dinheiro, do nosso esforço sagrado à troco de nada. O espelho que se quebra todos os dias, o espelho omisso. A omissão da mão que se estende, do prato de comida que se serve, para aquele que não verá outro igual amanhã. Sustentamos esses hamsters, os observamos correr em suas rodinhas de exercício, e não os desejamos ali. Como terras improdutivas que se tornam vítimas de apropriação ilegal, que passa a ser legal, que se torna comercial, e reinicia um ciclo de desonestidade já habitual. E viramos diariamente os olhos e os sentidos. Lacramos o peito contra toda essa falsa piedade. Toda a nossa falta de bom senso. Sentimos muito, já nos sugaram toda a compaixão, não podemos mais compartilhar nosso descaso, nosso interesse, nossa preocupação. Desistidos estamos, muitos de nós, e esperamos descrentes pelo dia em que alguma coisa se moverá mais rápido, mais devagar, no sentido certo(só se tiver um) e enfim as peças começarão a se encaixar. Comecei a falar tolices...esperar e estar descrente são estados que não podem caminhar de mãos dadas. Não podemos dar as mãos, não precisamos, não devemos.
Deixaremos vir mais pesos mortos, faremos o nosso papel. Exerceremos essa falsa piedade, quebraremos mais espelhos de omissão...
...até que alguém tenha piedade de nós.
Este texto é em homenagem à mim, e a todos os outros profissionais da saúde que como eu, diariamente, vêem nascer crianças que sabe-se desde o berço, não ter condições plausíveis de futuro promissor.