DESCONFIA DA TUA BONDADE
Nada como uma passadinha pela Psicanálise, umas conversas com filhos ou amigos psicanalisados pra se descobrir logo como não somos esses seres humanos tão irretocáveis.
Acomodados com aquela idéia de boa gente com que inocentemente até nos temos visto, justificando eventuais gestos menos cristãos, auxiliados pela nuvem dos mecanismos de defesa (que funcionam) estamos vindo assim, vida afora, a salvo da correnteza do mundo mau dos outros, e equilibrados no caminho do meio dos razoavelmente assim chamados boas pessoas, cuidando pra não pisar em falso e ter que nos ver na banda podre dos que temos, um tanto arrogantemente algumas vezes, olhado como seres falíveis e maus. É uma forma equivocada de visão de mundo, pois todos somos falíveis, e reconhecer tal condição é o primeiro passo para um amadurecimento libertador.
Além disso, eu acho saudável que as pessoas aprendam a rasgar a bandeira das boas convivências quando se sentirem por demais invadidas pelos outros, para que estes tenham a oportunidade de perceber, mesmo contrariados e até a princípio muito cheios de razão, que algo realmente não está tão perfeito nos seus convívios. A primeira reação de quem recebe um não ou um chega pra lá é quase sempre uma sensação de ter sido injustiçado, lógico, pois é difícil aceitar os próprios erros. O grande entrave à aceitação de nossos deslizes e maldades, e estou falando de seres aparentemente equilibrados, consiste em que, aceitar a própria "culpa" é algo muito doloroso para quem foi educado sob uma moral cristã punitiva que vê o ser humano somente como pecador eterno e que constrói pela educação um super-ego castrador e implacável. Esta camisa de força moral tem sido responsável, ela sim, por muitas condutas altamente agressivas, covardes, criminosas, quando as energias que naturalmente seriam canalizadas para construir, acabam tomando caminhos tortuosos. Não existe melhor instrumento do que a repressão sem limites pra fazer surgir o pior do ser humano.
Entretanto, estes rompimentos não devem acontecer como um ataque, uma vendeta ou algo agressivo. Há formas civilizadas de dar respostas, inclusive uma delas é ficar indiferente quando o que nos aborrece está suficientemente longe e facilmente pode ser ignorado, sem nos causar maiores danos. Mas depende de nós amadurecermos para que não compremos sempre a briga daquela "criança" cuja maturidade estacionou bem lá atrás.
Limitando-me a uma órbita bem simplificada, dou o exemplo da suposta amiga que tenta tomar a atenção do namorado da outra, e depois se justifica dizendo que não tinha a menor intenção de seduzi-lo, quando acaba de revelar que ele aceitou seu convite e foram juntos à Feira do Livro. Nesta suposta inocência existe, isto sim, uma deliberada intenção de roubar o "brinquedo" da outra, disputar a atenção de um suposto "pai ", e uma disputa que faz com que na verdade deseje "ser " a outra, tudo isso resultado de dilemas não resolvidos na primeira infância, onde possivelmente tal mulher careceu do afeto paterno e tais carências concorrem para que tenha baixa auto-estima, o que a faz querer tornar-se a amiga, incorporar aquela que julga superior tentando "possuir " o que é da outra.
"Provavelmente, o que em alguém, num universo de convívio de muitos indivíduos, aparenta e se mostra como repúdio agressivo ao outro, vileza, maldade, é apenas um desejo grande de ser visto e ouvido, de ser lembrado, reconhecido no seu valor, mesmo que o fazendo por caminhos tortos. Tais indivíduos não aprenderam ainda como pode ser melhor o entendimento, pois provavelmente são seres que não conseguem ainda ter a compreensão de que a aparente indiferença alheia, a solidão e auto-suficiência de quem é diferente, não significa uma ameaça, ou desdém, ou desejo de ferir de forma direta e premeditada."
Outro exemplo, ainda, encontrado num livro sobre ansiedade no século vinte, fala sobre imaturidades quando o autor diz que muitos homens da política e até governantes agem como meninos que ainda parecem estar a dizer uns aos outros "o meu pai bate no teu..."
De certa forma, a maioria de nós somos imaturos, justamente por perpetuar comportamentos neuróticos engendrados na infância e que prosseguem pela vida adulta,com prejuízos para nós e para os que nos rodeiam. E concluindo:
"Muitas vezes, muitas pessoas, por pura estranheza e receios, e até distorções da realidade, ao perceberem que algo ou alguém consegue viver de uma forma diferente, interpretam isso como uma provocação e por pura estranheza agridem, partindo de uma visão egoísta e imatura de que o exterior precisa estar sempre em conformidade com a sua visão e conveniências. Isso faz lembrar a criança que ainda vê o exterior como uma projeção de si mesma e que, ao tocar um solo duro de pedra com a sua mão curiosa, pode pensar que aquele obstáculo ali se encontra para desafiá-la."
Nota: os trechos entre aspas pertencem à crônica "As Agressivas Formas de Pedir um Olhar", outubro /2010)