Uma tarde
A tarde tinha um ar rançoso, sufocante, salobro, caminhar é um suplício, respirar um martírio. Não tenho certeza se esta atmosfera opressiva realmente existe, ou se é fruto de minha mente, moribunda e embriagada, de qualquer modo, estou imerso nela. Enquanto vago pelas ruas de pedra morta e cinza, vejo vultos, coisas amorfas, dotadas de olhos, que me fitam asquerosamente, retribuo-os com igual intensidade assassina. Não compreendo o asco que transborda desses desconhecidos olhares, me revoltam, sinto dolorosa vontade de perfurá-los, todos, sem exceção. A esmo me movo, perdido no tempo, que parece escorrer languidamente, em certos momentos, e disparar furiosamente em outros, entretanto, não é algo com que me importe, o tempo, coisa fútil. Esbarro com violência num dos vultos sombrios, que sibila qualquer coisa venenosa e me empurra bruscamente, de repente estou num carrossel, tudo gira vertiginosamente, minhas pernas perdem a consistência, desabo pesadamente. Deixo-me cair, me deixo caído, aquele marasmo infindável ainda me envolve, acho melhor ficar ali, sorvendo o frio do chão. Mais e mais vultos, infinitas criaturas brotando do breu, atravessam meu campo de visão, me encaram com olhos odiosos, exausto, deixo de devolver-lhes os olhares. Deixo-me caído, envolto por putridão, olhos voltados para o solo. Deixo que o tempo flua como bem entender, não sou seu senhor, e digo para mim mesmo que a recíproca é verdadeira. É verdade, o maior dos mentirosos é capaz de enganar a si mesmo.
Passa o tempo, minhas pernas, ainda que parcialmente, recobram suas forças, deixo de deixar, e alço-me de pé, agarro-me em parapeitos inexistentes, algo dentro de mim parece estourar, levo as mãos a cabeça. Respiro daquele ar fétido, que revolta minhas entranhas, decididamente cambaleio viela abaixo, tem um bar nesta rua, tinha, deveria ter. Giro uma enferrujada maçaneta, fumaça escorre da porta recém aberta, com passos incertos me arrasto até um velho balcão, que cheira madeira podre, e nele me escoro, no móvel coberto de ranhuras apoio os cotovelos, e a cabeça na palma das mãos. O ar aqui é pesado, mas eu gosto, vários vultos em vários cantos do cômodo, gosto deles, de seus olhares, solto o ar aliviado. Encaram-me com sincera compreensão, não piedade, simpatia ou algum outro sentimento benevolente; isso não é para gente como nós. Flagelos da sociedade, escarrados sobre o mundo, dejetos, refugos. Peço uma bebida para o velho atrás do balcão, que me fita impaciente, após perceber que posso pagá-la, ele prontamente me serve algo, não me importa o que seja, sinto o forte cheiro de destilação, alegro-me visivelmente. Ah, a bebida, a maior das prostitutas, serve a qualquer um com uns trocados no bolso, o satisfaz por um período de tempo, diretamente proporcional à quantidade de tostões cedidos, para depois largar um vazio no homem a quem serviu. Continuo esvaziando copos, até minha vista embargar, minha cabeça roda, minha sensibilidade se esvai pouco a pouco. Não sem dificuldade me levanto, lanço um derradeiro olhar aos meus companheiros, tenho certeza que é o mesmo olhar que me lançam. “Até mais camaradas, companheiros, irmãos, bastardos, até logo”.
O rançoso ar da tarde tornou-se o rançoso ar da noite, mas na escuridão, penumbra quando muito, tudo melhora. Sob o véu negro do anoitecer, se perdem os olhares maldosos que antes me cravejavam desprovidos de piedade ou remorso, é maravilhoso, inebriante. Sem o peso daquela reprovação ocular, me movo com delicada leveza, pareço flutuar, flutuo ruma a lugar nenhum, sabe-se lá por quanto tempo. Percebo a embriaguez evaporando-se, não quero voltar aquele bar, por aconchegante que possa ser. Devo ter algo em casa, casa? Ah é, onde penduro meu casaco, é, parece uma idéia, se não boa, razoável. Vou para lá, encontro uma garrafa, cheia dum duvidoso líquido, não que o conteúdo dela me interesse, em longos tragos, vai-se ele. Tudo começa a oscilar, literalmente me arrasto até a cama desarrumada, suja, rota, que é minha, me da conforto nas noites dolorosas; meu estômago parece estourar, o ignoro. Em seguida, nada fora o breu, o doce abraço da inconsciência. Desperto ainda tonto, a visão turva, um suor pegajoso escorre por meu corpo; sobrou um gole na garrafa, que logo emborco, meu estômago urra em protesto, e é novamente posto de lado.
A manhã tinha um ar rançoso, sufocante...