Embarque e desembarque

Todos sem exceção estamos fadados a crescer. E mesmo que você não queira, terá que se despedir da infância, depois da adolescência, mais adiante a juventude acenará com a mãozinha dando tchau e lhe apresentará a maturidade que anda de mãos dadas com a velhice que denota término.

Assim que desembarcamos na cidade “vida”, a cronologia do tempo nos obriga a conhecer alguns bairros dessa magnífica cidade. Cada bairro possui um único ônibus, que ao chegar ao último ponto do mesmo, limítrofe com outro, somos convidados a desembarcar para pegar o coletivo do bairro adjacente, que transitará por ruas e lugares até então desconhecidos até o limite com o outro bairro. Esse processo de embarque e desembarque de um ônibus para o outro do bairro seguinte se repetirá algumas vezes.

O ônibus que deixamos no fim de cada bairro, retorna ao início do mesmo para coletar novos passageiros e conduzi-los a estação seguinte.

Somos senhoreados pelo tempo, não temos o menor domínio sobre isso.

Na verdade não somos nós quem mudamos de fases, são as fases que se despedem de nós, elas nos abandonam no momento em que o motorista que conduz o ônibus pelos bairros da vida, param nos pontos onde os mesmos findam e informa com voz potente.

- último ponto do bairro “infância”, favor criançada, pegar o ônibus da frente com destino ao bairro “adolescência”.

Neste ponto as crianças descem alegres e ligeiras. E já acomodadas na outra embarcação, depois de percorrerem toda a adolescência o motorista pára no último ponto dessa região, abre a porta e informa com vozeirão.

- último ponto do “adolescência”. Favor pegar o coletivo da frente para desfrutarem do magnífico e curto bairro “juventude”.

Quem caminha pela adolescência anseia chegar à juventude e assim que penetra no ônibus que os conduzirá pelo tão desejado bairro, observam que alguns homens com idade um pouco mais avançada estão presentes e questionam com o motorista sobre aquele disparate.

- quem são esses coroas? Eles não estão no ônibus errado?

O condutor responde mecanicamente como quem responde a mesma pergunta há anos.

- é comum alguns “garotelhos” permanecerem nesse ônibus.

Tempos depois o coletivo estaciona e o piloto anuncia.

- último ponto da juventude! Próximo ônibus com destino a “madureza”.

Nesse ponto os jovens já não descem com tanta rapidez, muitos carregam no semblante a insatisfação em deixar aquele fantástico bairro, onde o descompromisso e a despreocupação faziam os dias e as noites pulsarem com estrema vitalidade. Medos, inseguranças e limitações não faziam parte daquele empolgante percurso. As mulheres, os prazeres, o sentimento de que o mundo era pequeno demais para que nós pudéssemos transmitir toda nossa alegria, todo nosso conhecimento, toda nossa grandiosidade. Realmente naquele percurso nós éramos imbatíveis, semideuses, quase imortais... Nesse momento o condutor fica a nos fitar com o olhar crítico aguardando que desembarquemos e anuncia com rispidez aos que titubeiam no desembarque.

- Vamos meus jovens, preciso retornar e o viação madureza já vai partir!

Enquanto faz o retorno, o motorista veterano observa pelo retrovisor que alguns dos que desembarcaram no "juventude" não pegaram o “madureza”, muitos deles - inclusive o garotão que no inicio da viagem questionou sobre os coroas que estavam abordo -dependuraram-se na porta traseira do ônibus, alguns entram pela janela e se esconderam atrás dos últimos bancos, unindo-se aos “garotelhos” que ali já estavam. Mas o condutor é veterano e já está costumado com aquela situação, balança a cabeça negativamente e prossegue ao inicio do bairro em busca de outros jovens.

“O madureza” prossegue, nutrindo seus passageiros com doçura, compreensão e sabedoria. Até que os freios são acionados e a já conhecida frase é novamente pronunciada.

- último ponto do bairro madureza, senhoras e senhores, favor descer com cuidado e pegar o último ônibus da cidade “vida”. Parabéns, não são todos que conseguem chegar ao adocicado bairro “velhice”.

Nesse ponto os passageiros desembarcam com os cabelos grisalhos, a pele sem a tenacidade de outrora, com cicatrizes que denunciam a ferocidade do embate. A maioria dos idosos aparentavam estar mais conscientes do que querem, demonstrando conhecer melhor agora a engrenagem da vida, encontram-se agora encharcados de aprendizado e sabedoria, com o emocional e o mental transformado e fortalecido pelas chibatas das decepções, das insatisfações, da existência, que fazem parte dessa baldeação necessária aos que pretendem conhecer e aprende com a “vida”.

Quanto aos que se aprisionaram no bairro juventude! Esses permaneceram imaturos e desconheceram ensinamentos extraordinários, valiosíssimos aos viajantes da vida, mas serão obrigados, por motivos cronológicos a adentrarem no último ônibus da vida e trarão nítidos em seus semblantes, em seus comportamentos os sintomas claros da imaturidade, do equivoco que cometeram.

Assim que os jovens senhores se acomodam na “viação velhice”, antes de assumir o volante o condutor distribui “sua consciência”, título de um enorme questionário com várias folhas contendo inúmeras perguntas do tipo: De que forma você aproveitou seu tempo? Evitou ou fomentou discórdias? Colaborou com quem precisava ou só enxergava esperteza em tudo e todos? Doou-se em algum momento ou você era sempre o mais necessitado? Mentiu para os outros, para você mesmo ou para ambos? Priorizou em algum momento conectar-se com as energias espirituais ou as dívidas e o corre-corre da vida não lhe deram essa oportunidade?...

Antes de partir o motorista informou pausadamente.

- nesse último bairro não temos pontos preestabelecidos, as pessoas poderão desembarcar a qualquer momento, entretanto antes de saltarem, favor deixar o questionário preenchido e assinado comigo. Entenderam?

Todos esticaram e chacoalharam os braços fazendo enorme algazarra, era uma grande festa, parecia excursão de idosos. O burburinho estava intenso dentro do coletivo, grande parte dos idosos transbordavam satisfações, sentiam-se contentes com o caminho percorrido e não tardou muito para que a primeira parada fosse solicitada.

Uma senhora com cabelos alvos, vergada por arrastar mais de 90 anos, aproximou-se do motorista, entregou-lhe “sua consciência”, despediu-se dos companheiros de viagem, agradeceu ao condutor que antes de guardar seu questionário, destacou um pequeno pedacinho de papel que estava grampeado no topo da papelada, golpeou o verso do pequeno papelzinho com um carimbo e entregou-o a senhora antes que a mesma desembarcasse.

Os passageiros ficaram atentos, observando todos os movimentos tanto da idosa quanto do motorista. Naquele instante todos notaram que também possuíam em seus questionários o mesmo papelzinho, que trazia impresso em seu bojo o planeta terra fotografado do espaço.

Ao receber o papelzinho carimbado do motorista a senhora perguntou.

- o que faço com isso?

E o motorista respondeu atraindo os olhares e a atenção de todos a bordo.

- guarde-o com carinho. Essa é sua passagem de volta.

Paz.