A última palavra
O velho escritor sentou-se à sua escrivaninha e pegou uma pasta empanturrada de papéis. Era sua autobiografia. Só faltava uma palavra e o ponto final para encerrar a obra definitiva de sua vida. Enquanto folheava os papéis, alguns manuscritos outros da máquina de escrever, pensava sobre tudo o que tinha sucedido em seus oitenta anos.
A saudade bateu em seu cansado coração com a força de uma chibatada. Pensou nos filhos, todos casados, independentes e longe de seus braços. Um fio de lágrima caiu dos olhos ao ver a foto de sua esposa, morta havia quatro anos. A maioria de seus amigos antigos de trincheira literária também tinha se despedido da vida. Os novos conhecidos, no entanto, mostravam-se quase todos insuportáveis. Eram acadêmicos, tecnocratas, jornalistas. Alguns, até políticos. Deles, poucos sabiam pensar sem antes ler jornal.
Apesar de famoso e convidado para eventos culturais, detestava cada dia mais holofotes e perguntas de repórteres. De um ano para cá, declinava da maioria dos convites e de entrevista. Só queria sossego e puxar fumaça em seu cachimbo irlandês, ganho em Dublin, durante um seminário sobre James Joyce. O médico já não o proibia mais destes exageros.
Sentiu-se solitário, um albatroz em alto-mar. Havia feito quase tudo de errado na vida e continuava em pé, razoavelmente saudável. Viajou, fumou cigarros de todos os países, mulheres, noitadas, bebidas e ali estava ele, agora, ainda vivo, relembrando os mortos. Escapou de tudo. Até de um atentado praticado por um militante radical que o considerava um escritor subversivo, perigoso à ordem estabelecida. Ganhou um tiro no estômago e um mês no hospital.
Havia arrebatado quase todos os méritos que um homem das letras pode conseguir em vida. Certa feita, foi indicado até para o prêmio Nobel. Mas perdeu e nunca mais sonhou com igual laurel. Quanto à academia de letras, nunca permitiu que seu nome fosse lembrado. Achincalhava e ironizava os acadêmicos e suas roupas bordadas a ouro.
Não se considerava descrente da natureza humana. Ainda acreditava ser a literatura a suprema entre as atividades artísticas. Sempre dizia ser a escrita a única forma de valorizar a palavra, dom maior do homem, bem como sua alma. Durante toda a vida enxergou a literatura como bálsamo para o espírito, freio da barbárie e centelha da esperança.
Em mais de 20 romances e outros pequenos escritos usou todos os recursos literários acumulados em sua vida de ledor voraz. Utilizou a estranheza de Alan Poe, a grandiosidade de Shakespeare, a ironia de Machado, o niilismo de Franz Kafka, a magia de Garcia Marquez, o humanismo de Cervantes, a perseverança de Victor Hugo, a sagacidade de Erico Verissimo, a criatividade de Maupassant, a rebeldia de Émile Zola, o aventureirismo de Hemingway, a deidade de Homero, a resistência de Tolstói, as narrativas de Balzac e Stendhal e a gramática de Guimarães Rosa.
Pegou a última folha de sua autobiografia e escreveu a palavra derradeira. Pensou mais um pouco na valia de tudo que ali estava escrito. Será que suas andanças pelo mundo, suas bebedeiras, amantes e outras aventuras seriam de relevância para alguém? Ou apenas um Raimundo, como a rima de Drummond?
“Um homem tem de viver sua vida sem espelhos, sem líderes, sem mitos, sem cânones, sem regras, sem imitar outrem. A liberdade, como diria Thomas Hobbes, só é conquistada ao transgredir as leis. Não sou, não quero e não devo ser exemplo para ninguém. O que vivi não saciou nem a mim mesmo, como posso me arvorar o direito de servir de caminho a algum perdido?”
Pegou sua autobiografia e colocou numa bacia de alumínio na varanda. Encharcou os papéis com álcool e riscou o palito de fósforo. Ficou olhando as chamas até a última mancha branca de papel tornar-se cinza preta. “Meu caro Kafka, sou melhor piromaníaco que você. E não há nenhum Max Brod que possa me redimir.”
Sentou-se novamente na escrivaninha, abriu a gaveta e pegou um saquinho com um sal branco dentro. Jogou o pó num copo de água e bebeu. Depositou lentamente sua cabeça na mesa, junto com as mãos e fechou os olhos. Minutos depois, escutou a voz de sua mulher, cada vez mais próxima, chamando-o. (FIM)