Febrereiro

Febrereiro

 

 

 

Onze pessoas desaparecem por dia em Sampa. Está na primeira página do jornal. E não reaparecem. Por mês são 333, lógico, depende do mês. A resposta para o ano é facílima, visto que todo computador possui um dispositivo embutido chamado Calculator.

 

E pensar que, quarta passada fui de novo ver “A Rede Social”. Qualé? Por cincão, uma salinha de cinema com todas as comodidades do grande cinema e a suprema comodidade de estar quase vazia (ou seja, sem as hordas), numa casa arborizada, num local tranqüilo (ou seja, no shopping, no tiros, no seguranças, no gritos, no hordas). Espero que na próxima quarta mudem o filme. Se eu te disser que a idade não chega e que por outro ângulo é de fato algo tão sensível quanto um estralar de ovos teria de fazer como Tim Maia e confessar que nunca em toda minha vida falei uma mentira.

 

Noticias chegam. Fiquei sabendo que despediram uma menina por ter veiculado no Twitter que o político tal poderia pendurar as chuteiras. Quanto poder, minha nossa. O que me leva a seguinte formulação: só conservamos o que temos dando-o aos outros. Quer dizer, pra que despedir? O barato desse grande poder seria passar a mão no telefone e dizer: e aí mina, zuzo? Falou mal de mim? No problem, to te mandando um jatinho, vá passar um final de semana em Itacaré, tudo por minha conta, depois venha conhecer minha quinta, ler meus livros, ainda te dou dois tostões para escrever uma resenha sobre o conjunto da obra. Mas não. Esse negócio de colocar na rua não deixa de ser uma forma de expressão. E olhe que tem estudante(s) sendo processado(s). Porque abriram o bico e apontaram alguma mazela. Sim, sim, Era de Aquário travestida de Caranguejo com uma pitada (por enquanto é uma pitada) de Ovo da Serpente. O amanhã sempre chega.

 

Ontem fui a um recital de poesias e o sujeito encarregado de fazer o papel de mestre de cerimônias convidava os poetas como se estivesse na avenida com um pandeiro chamando a ala das baianas. Deve ser o clima. Várias vezes tive de me lembrar que ele estava fazendo o melhor que podia. Ponto. E tudo ia bem até a chegada da Gilda. Olha, vou te contar, coisa de 20 anos atrás tive um escritório numa rua de feira livre. Toda a quarta era a mesma rotina e havia uma mulher, estropiada, desmazelada, que perambulava pelo local quando os feirantes começavam a desmontar as barracas. O pessoal, com um senso de humor muito particular, dizia pra ela: e aí tia, caiu da moto?!

 

A Gilda subiu no palco e me veio à mente essa mulher. Enquanto o poeta ou a poetisa se limitava a dar o seu recado com poesias de uma ou duas páginas e ceder lugar ao próximo a Gilda afirmou que meus ouvidos eram mesmo um par de penicos e começou com um infindável (e despropositado) marketing pessoal para depois clamar guturalmente um troço que só seria poesia no paleolítico. Alguém saiu perdendo com isso. E a segunda coisa que me veio à mente foi: outra dessa num guento.

 

Para compensar, 6 quarteirões além e algumas horas depois 3 meninas ensejaram um agradável trio instrumental e estamos conversados. São Paulo, com toda essa banca de capital da gastronomia, moda, negócios, isso e aquilo, quando não persegue o artista de rua espanca, e espanca mesmo, pra valer, vide o ocorrido e oficialmente não divulgado espancamento de um guitarrista na Avenida Paulista em fins de novembro de 2010. Surtiram até protestos em frente ao prédio da Gazeta. Nada devidamente noticiado, como manda a cartilha da Serpente e do Ovo. Para o vigia do presente momento fica a cândida informação: não há capital, nos USA ou na Europa, onde o artista de rua não seja tratado com o merecido respeito. Descobriu-se nessas capitais que nem todas as pessoas tem aptidão profissional para passar um papelote ou empunhar um tresoitão.

 

Calor pra que te quero, chuva idem, fevereiro parece um metódico carimbo vitalício e um jornalista norte-americano (penso eu), escreveu “Nascido pra correr” onde, através de extensa pesquisa, ele atesta que o ser humano consegue correr mais do que um cavalo, não em termos de velocidade e sim de resistência. Para os céticos existem links no YouTube mostrando provas gênero homem versus cavalo e o quadrúpede literalmente arria as patas, pois o único mamífero que consegue manter o trote por até 18 horas seguidas é o ser humano. Bem, nascemos para descobrir.

 

Aos amantes da boa informação depressiva fica a dica “Confissões de um Assassino Econômico”, de John Perkins, autor e delator do processo de espoliação feito pelo Big Big Business (leia-se USA) sobre irmãos menores, leia-se Panamá, Indonésia, etc. Bastante edificante. Ernest H. escreveu: o mundo quebra em toda parte e as partes quebradas ficam mais fortes. Escritores...

 

Agora me ocorre outra máxima: só ensinamos pelo exemplo. Há mais de meio século essas denúncias surgem, lá e acolá, feito gotas de orvalho fora de hora, o xis do trabalho de Perkins está no fato de que ele mesmo foi um esquartejador de iniciativas sociais positivas em nações emergentes, iniciativas essas que seriam muito boas para as maiorias e péssimas para os poucos que controlam o fluxo de caixa.

A cantilena de sempre, para o processo da moagem se completar faz-se necessário o moedor. Matéria prima abunda.

 

O Grande Irmão dá o exemplo e o pequeno assimila, assim, aqui, em caso mais comum e extenso do que os desaparecidos, o síndico fala para o porteiro que trabalha de segunda a sábado: domingo seria a sua folga, mas acho que você vai limpar a caixa d‘água. Eis a equação de Perkins climatizada no individual. Pode multiplicar, fazendo uso, porém, da imaginação.

 

Não sei de quantos exemplos ainda precisaremos. Setenta vezes sete, diria o Mestre, e já posso ouvir outro plantonista reclamado: ei, isso é para o perdão! Precisamente, embora me atreva a lhe dizer, não chegaremos a lugar nenhum, mal e mal em março, sem um pouco de perdão, seja para nós mesmos, seja para os outros.

 

(Imagem: Yinka Shonibare, Astronauta de Refugiados II, 2016)

 

 

 

 

Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 21/02/2011
Reeditado em 27/02/2022
Código do texto: T2805702
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