O HOMEM QUE DEVIA DE MENOS

Conheci o homem que devia de menos em Buenos Aires, ao sentar-me ao seu lado em um show de tango. Neste espetáculo, a casa trazia a opção de, pagando-se à parte, jantarmos no belo restaurante do local.

Ao ouvi-lo em português recusar o menu apresentado pelo garçom, percebi que tratava-se de um brasileiro. Também em português, disse ao garçom para aguardar e convidei aquele senhor para me acompanhar à janta. Senão no suculento bife de chorizo, pelo menos no bom vinho Malbec que serviam. Com um sorriso, ele aceitou o convite e me acompanhou em ambos.

Encerrado o show, recebemos dois cafezinhos, dois alfajores e a conta do jantar. Ao pegar minha carteira, aquele senhor permaneceu imóvel e não me acompanhou neste gesto. Estranhei, pois as circunstâncias recomendavam, no mínimo, o clássico “vamos dividir”. Tudo bem, nada que estragasse aquela agradável noite. E assim ele se despediu, deixando comigo um “obrigado” e a impressão de que nunca mais o veria.

Para minha surpresa, na manhã seguinte encontrei-o na piscina do hotel. Eu, com uma cerveja em minhas mãos, perguntei se ele bebia algo – desta vez consciente que talvez eu tivesse que pagar. Mas aquele senhor respondeu que, depois, beberia "uma água" no banheiro para “não ficar devendo nada para o hotel”. Achei que ele estivesse brincando, até que o vi usando uma pia como bebedouro.

Após presenciar esta cena, não me contive e disse em tom de brincadeira: "E ontem o senhor bebendo vinho em um show de tango, hein?!”. Ao que fui com um sorriso respondido: " – O show fazia parte do meu pacote, que ganhei de presente dos amigos do trabalho ao me aposentar. E, para beber o vinho, foi você quem me convidou, não foi?!". Ele tinha razão. Mas mesmo assim perguntei se não era exagero economizar com ÁGUA. Após refletir um pouco, ele respondeu: " – Não gasto com o que não preciso. Aprendi, após 30 anos como bancário, a economizar E NÃO FAZER DÍVIDAS!", enfatizou ele ao dizer esta última parte.

No papel de advogado do diabo, falei que eu não conhecia um brasileiro que não devesse. Orgulhoso, aquele senhor disse que agora eu havia conhecido um, e que tanta parcimônia rendeu-lhe o apelido de "O HOMEM QUE DEVIA DE MENOS".

Percebendo meu ceticismo, ele contou um pouco de sua vida. " – Meu filho, tenho sessenta e oito anos e moro na casa que herdei dos meus pais. Nunca tive carro. Ao trabalho, quando jovem ia de bicicleta; e quando a idade me impediu de pedalar, meus cabelos brancos garantiram a gratuidade de minha condução.”

Disse mais: “ – A conta bancária, que mantenho no mesmo banco em que trabalhei, recebe minha aposentadoria e debita as contas básica, que não passam de 5% do que ganho. Não tenho celular, internet ou TV a cabo, e vivo muito bem sem isso. Tenho uma fazenda com agricultura e pecuária de subsistência. Não tenho porque fazer dívidas e assim vou levando minha vida..."

Não me dando por vencido, perguntei dos impostos, escola dos filhos, esposa, plano de saúde, empregados, cartão de crédito, etc. Ao que fui respondido: “ – O governo é que me deve dinheiro. Uma das fazendas que era de meu pai foi desapropriada. Compenso meus impostos com o crédito desta desapropriação. Meus funcionários trabalham em troca de comida e moradia. Minha esposa já faleceu e meus filhos estudam em universidades públicas. Não tenho assistência médica privada, não fumo e raramente bebo. Assim, cuido da minha saúde com boa alimentação e exercícios diários. Despesas extras, pago todas à vista e em dinheiro, pois nunca utilizei cartões de crédito ou talão de cheques.”

Por alguns instantes o invejei. Uma vida sem dívidas, deve ser bem mais leve do que uma vida com elas. Mas de repente, a fisionomia do homem que devia de menos foi denotando tristeza.

Então ele me disse: " – Acumulei uma riqueza que não desfrutei e agora meus filhos estão de olho nela. Já brigam por meu patrimônio comigo ainda vivo, e quando me visitam, a primeira conversa que temos é sobre um asilo que eles acharam maravilhoso." Após uma pausa, ele completou: “– Preocupei-me em não dever por toda a minha vida, mas esqueci de vivê-la. E hoje meus filhos fazem exatamente o contrário...". Neste momento, seu olhar perdeu-se no vazio, como se procurasse algo em seu passado, e, com um triste semblante no rosto, sua cabeça foi se inclinando para frente.

Tentei animá-lo, dizendo que ele ainda poderia aproveitar a vida, repetir esta viagem e quem sabe fazer outras melhores, com seus filhos e com seu próprio dinheiro. Então ele me disse, com a voz embargada: "– Ah! Rapaz, em minha idade, o que mais temo é a mudança de velhos hábitos."

E assim ele me deixou, talvez para não chorar em minha frente, com uma frase que jamais me esquecerei: " – Não deixe de viver por causa de dívidas. Nem pelas dívidas de mais; e nem pelas dívidas de menos".