Estranho caso de envio

A inteligência conserva a curiosidade como substância vital. Naquele dia mal conseguia dormir. Havia algo desenfreado em sua alma. Ficar na cama não resolvia. Desceu até sala pensando em quem despacharia a caixa. Talvez devesse ceder a si mesmo mais tempo deitado esperando. Temia que no fundo ficasse reduzido a partes desiguais em aberto. Não haveria denúncia sobre o conteúdo oculto. O remetente havia suprimido o nome dos registros. Talvez simplesmente esquecera seus dados. Sentiu que havia engano. Não estava certo o que não podia compreender. O expedidor anônimo visava uma posição de surpresa diante do fato. Devia ocupar um quarto negro de solidão irrefreável. Agora era a sua vez de se sentir centrado na ansiedade da espera.

“Conservar na memória, não esquecer jamais”. A voz acre da ordem palpitava naquela cabeça de velho. Mergulharia no próprio desejo de abrir aquela caixa como quem mergulha na água sem receio de lhe faltar recursos para sobrevivência. Precisava de novidade no mundo repetido, assim como a pele da cabeça procura sempre um afago inusitadoa, positivo. Mas estava exposto a sorte do fator desconhecido. Restava o quê? Sua imagem se desenhava como quem espera ansioso o reflexo através do espelho embutido na parede. Por trás dele se podia ver sem ser visto. A sensação de ser inaparente fora mantida como inclinação próxima da fantasia durante longos anos. Jamais se dissiparia. Desde pequeno, nutria simpatia pelo estado unicolor de estar sem ser, como se a presença fosse sentida longe do plano real. Talvez por isso, infatigavelmente, reunisse forças para esperar o conteúdo encaminhado. Mesmo sem saber do conteúdo, esse era o jogo.

“Sr. W. Navarra - recebe esta caixa”. Era só isso. Sequer lhe relatava o peso específico. Voava-lhe a imaginação na alma vaga sem estampa. Havia um lenitivo na promessa, sempre apenas um lenitivo. Podia ser pedaço de corpo, fruto de crime bárbaro. Como podia aceitar um objeto sem saber o que está contido dentro? Mas acaso este não é o dilema comum?

A espera produz grandeza sobre a mínima idéia aproveitável como pista. Um tal Serqueira lhe devia um livro. A mulher de nome Marga, dona da estância de lenha, devia-lhe a cópia de um antigo documento entranhado no cartório. Por último recordou a mulher morta que antes lhe prometera um objeto de cozinha. Mas uma mulher morta com quem havia dormido uma única vez na vida não poderia lhe devolver um espremedor de frutas depois de longos anos.

Sem pistas observava o relógio encurtando as horas. O gato com seus olhos longos fazia sombra na cortina incendiada pelos primeiros raios de sol.

Cansado de se consumir ouviu a campainha. Era o carteiro. Realmente trazia a caixa de pouco volume embrulhada em papel pardo vagabundo. Antes de rasgar começou a buscar na intuição o seu conteúdo. Sentou-se disposto ainda a refletir sem conseguir por as idéias em ordem. Seu coração começou a bater forte, porém com lógico e razoável rigor. Era a primeira vez que se metia com algo desconhecido e havia gastado uma vida em crenças obscuras como uma caixa vazia indefinidade. Estava surpreso: então era ele quem adicionava conteúdo a rede disponível da imaginação. Aquilo provocava proporcionalmente uma idealidade confusa. Permanecia convencido de que estava sobre influência da mesma matéria utilizada para alimentar o campo colorido das fantasias. O mesmo espaço engrenado para descortinar as ilusões do mundo e criá-las. Ao abrir se deparou com algo extraordinário.

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Tércio Ricardo Kneip
Enviado por Tércio Ricardo Kneip em 18/02/2011
Reeditado em 25/10/2016
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