Por um amor que nunca viu
Todo dia, ao entardecer, quase sempre às dezoito horas, sentava ali na calçada da “tia Chiquinha,” esperando a hora exata que o sino da igreja deveria tocar.
Neste mesmo horário, Joaquim Pedro apontava no início da rua com a sua bengala à frente, lhe indicando a direção segura pela qual deveria seguir.
Perdera a visão ainda muito jovem, e desde então, jamais foi visto em qualquer outra companhia. Vivia e caminhava sempre sozinho, e era difícil imaginar como sabia exatamente aonde ir.
Pra onde ia; de onde vinha. Ninguém sabia dizer.
Eu ficava ali imóvel, sem mexer um dedo sequer quando ele se aproximava, com receio de chamar a sua atenção. Aquele seu jeito de caminhar beirando a rua, de cabeça baixa era algo que realmente me assustava. Na verdade, quase todos desviavam e evitavam o seu caminho.
_ “Boa tarde seu moço!”, disse ele.
Nunca consegui entender como ele sabia que eu estava ali parado. De alguma forma, conseguia perceber a presença das pessoas, mesmo lhe tendo sido tirada a capacidade de enxergar.
Caminhou em minha direção, sentou-se na calçada, quase ao meu lado, e começou a falar:
_ “Quando se perde a visão ainda muito jovem, é preciso aprender a ver com os outros dons que você tem. Nesta minha vida de luta desatinada, já vi muitas coisas que não existiam, e outras tantas que existiam e eu não conseguia ver. Hoje, enxergo mais com os olhos cerrados, do que quando os tinha sãos.
Houve um tempo em que fui jovem, sadio e cheio de vida. Um tempo em que corria por estas mesmas ruas nas brincadeiras de menino. Cresci e sabia que em algum lugar estava a mulher que havia sido preparada pra mim. Por esta mulher eu esperei todos os dias. Seu rosto, seu jeito, seu modo de falar; tudo guardadinho na minha cabeça de adolescente, esperando a hora de encontrá-la. Estava em algum lugar que eu não conseguia chegar.
Tinha certeza de que quando batesse os olhos nela, saberia de imediato, reconhecer a minha escolhida; isso se algum tempo depois não tivesse sido privado da visão”.
_ Como é possível viver todo esse tempo, amando uma mulher que nunca viu? Perguntei.
Joaquim Pedro fez uma pausa, voltou a face para a linha do horizonte, bem acima do meu ombro e respondeu:
_ “Quando há sensibilidade, se vive em um só tempo, todas as idades”.
Finalmente os sinos badalaram, e ele apressou-se em seguir. Tomou novamente o canto direito da estrada, e sem dizer mais nada, caminhou até que eu o perdesse de vista.
Aquela foi a nossa única conversa e suas palavras ficaram comigo até hoje. Foi um amigo por um dia, que por falta da visão teve tempo de olhar para dentro de si mesmo. Aprendi mais com ele, do que com muitos que estiveram ao meu lado todo tempo.
Joaquim Pedro era um homem simples; tinha no falar uma estranha e inexplicável sabedoria, que não vinha de nenhum livro. Morreu como muitos. Viveu como poucos: por um amor que nunca viu.
Talvez agora, quem sabe, pra sempre...