*Imagem retirada da rede - Desconheço a autoria
SALTIMBANCO
Sandra Mara
“(...) Nós gatos já nascemos pobres, porém já nascemos livres.
Senhor, senhora, senhorio...Felino não reconhecerá.”
(História de uma gata – Chico Buarque)
- Oh, não! Exclamou ela em ar de pânico.
-O que aconteceu? Quem morreu? quando? como?
-Você nunca entenderá. Eu falo, eu aviso, ninguém me escuta, as pessoas não têm mais respeito com as coisas dos outros. Eu sabia, eu sabia que isso aconteceria – E assim ela continuou num misto de dor e raiva.
Depois de muito “eu digo isso”, “eu digo aquilo”, finalmente revelara o porquê daquele terremoto doméstico.
- A minha toalha de mesa. Você viu o tamanho da mancha? Tá lá, vai ver, vai ver se eu não tenho razão de falar. Depois todo mundo me chama de chata. Mas olha lá. Tá lá pra todo mundo ver. Aposto que está lá há dias e ninguém percebeu. Se não for eu nessa casa para prestar atenção em tudo, ninguém liga, a casa cai e ninguém está nem aí.
- Mas eu não vejo nada. Deve ser bem pequena porque por mais que eu tente, não consigo perceber.
- Ah, você também é igualzinha a eles. Não liga pra nada, não tem preocupação, o mundo pode desabar e você não vê. Vive largada por aí, feito “gato sem dono”. Por isso nunca terão nada na vida. É tudo farinha do mesmo saco, você e eles. Olhem pra mim, tudo o que eu tenho foi construído e comprado com muito esforço, muito suor. Mas um dia vocês aprendem. Ah, se aprendem.
Simplesmente, calei. Voltei pra casa pensando naquelas palavras, naquela reação, naquele sofrimento todo por conta da tal mancha na toalha de mesa. “Gato sem dono”. Então era assim que ela me via. Quieta, fiquei matutando umas idéias, trocando um dedo de prosa com meus fieis companheiros de jornada – os meus botões. De fato ela adquiriu muita coisa ao longo do caminho. Lembrei do sofá lindo que ela ficou namorando meses na vitrine da loja mas ninguém pode sentar para não estragar o estofado. Pensei naquela sonequinha de fim de tarde que todo mundo merece,( é que a gata manhosa aqui adora se esparramar pelos cantos da casa. Ai, xô pensamento ruim!), mas seus filhos nunca usufruirão, até porque seria assinar o próprio atestado de morte, caso tivessem a ousadia de pensar em sentar no distinto trono, digo sofá. Lembrei também da Plasma TV e do Home Theater, que os meninos não podem usar para não fazer barulho, uma vez que o som é estrondoso e se ela der uma folguinha que seja, é capaz deles cometerem o doloso crime de fazer pipoca e comerem enquanto assistem filmes. (Hum, melhor nem pensar ou a versão domestica da grande guerra mundial será vivenciada em grande estilo). Pôxa! Sempre pensei que eu era uma boa influência para a molecada. Já estava até me programando pra gente marcar de fazer brigadeiro e comer de colher, direto da panela. Ai que vontade! Mas como eu tenho muito amor à vida, acho bom não abusar. Embora sabendo que, nós felinos, fomos agraciados com sete.
“Gata sem dono!” Caramba! Isso não me saía da cabeça. Mas quer saber? Pensei. E quem precisa de dono? Eu, hein! Durmo o sono dos justos todas as noites, sem necessidade de nenhum aditivo, tranquilizantes ou coisas do tipo. Meu ninho é o mais aconchegante do mundo, me esparramo, me espreguiço de ponta à ponta e, ainda por cima, sou a dona do pedaço. Sou fresca sim. Adoro leitinho fresco, comida “engordiet” e passo horas e horas pulando nos telhados dos sonhos e das fantasias que as ‘mentes saudáveis” insistem em reprimir. Sou manhosa, dengosa e faceira. Mas também arranho se preciso for. É a lei de auto-defesa. Assim ensina a sábia mãe-natureza. Já joguei fora muitas toalhas manchadas, que rapidinho foram substituídas por outras mais bonitas, e algumas até à prova de manchas. Mas em compensação, meu coração ainda tem manchas difíceis de limpar, arranhões difíceis de cicatrizar, buracos que agulha nenhuma é capaz de costurar. Mas esse eu não pude substituir. Não se compra corações 0km, modelo do ano, emplacado e com performance comprovada, pronto pra enfrentar as rodovias da vida.Talvez seja isso o que me impedira de ver a tal mancha da toalha. Ela era muito fácil de ser reparada, enquanto as nossas manchas ainda precisam de pequenos e delicados cuidados para que possamos seguir na estrada.
Pensei nela com tanto carinho. A mancha vai sair e se não sair, sairá da cena pública, a toalha. É assim no mundo dos mercados, na era dos descartáveis. Ao mesmo tempo, agradeci por ser uma “gata sem dono” e não ser prisioneira das etiquetas, das verdades impostas, das saias justas sociais, dos labirintos psicológicos. Agradeci por não ser gata de sangue azul e poder sair por aí, livre dos protocolos, fazendo arruaça, cantando e dançando sobre os telhados de vidros dos seres racionais. Agradeci por minh’alma andarilha, por meu coração cigano e principalmente, por poder vivenciar todas as minhas vidas numa só. O teatro da vida sai por aí. No palco principal, muito luxo e riqueza. É a comédia da vida privada, aberta ao público, mas é nas coxias, sem plumas nem paetês, que pula e batuca o meu pobre coração saltimbanco.
"(...) Mas agora o meu dia-a-dia
É no meio da gataria
Pela rua virando lata
Eu sou mais eu, mais gata (...)"
(História de uma gata – Chico Buarque)
SALTIMBANCO
Sandra Mara
“(...) Nós gatos já nascemos pobres, porém já nascemos livres.
Senhor, senhora, senhorio...Felino não reconhecerá.”
(História de uma gata – Chico Buarque)
- Oh, não! Exclamou ela em ar de pânico.
-O que aconteceu? Quem morreu? quando? como?
-Você nunca entenderá. Eu falo, eu aviso, ninguém me escuta, as pessoas não têm mais respeito com as coisas dos outros. Eu sabia, eu sabia que isso aconteceria – E assim ela continuou num misto de dor e raiva.
Depois de muito “eu digo isso”, “eu digo aquilo”, finalmente revelara o porquê daquele terremoto doméstico.
- A minha toalha de mesa. Você viu o tamanho da mancha? Tá lá, vai ver, vai ver se eu não tenho razão de falar. Depois todo mundo me chama de chata. Mas olha lá. Tá lá pra todo mundo ver. Aposto que está lá há dias e ninguém percebeu. Se não for eu nessa casa para prestar atenção em tudo, ninguém liga, a casa cai e ninguém está nem aí.
- Mas eu não vejo nada. Deve ser bem pequena porque por mais que eu tente, não consigo perceber.
- Ah, você também é igualzinha a eles. Não liga pra nada, não tem preocupação, o mundo pode desabar e você não vê. Vive largada por aí, feito “gato sem dono”. Por isso nunca terão nada na vida. É tudo farinha do mesmo saco, você e eles. Olhem pra mim, tudo o que eu tenho foi construído e comprado com muito esforço, muito suor. Mas um dia vocês aprendem. Ah, se aprendem.
Simplesmente, calei. Voltei pra casa pensando naquelas palavras, naquela reação, naquele sofrimento todo por conta da tal mancha na toalha de mesa. “Gato sem dono”. Então era assim que ela me via. Quieta, fiquei matutando umas idéias, trocando um dedo de prosa com meus fieis companheiros de jornada – os meus botões. De fato ela adquiriu muita coisa ao longo do caminho. Lembrei do sofá lindo que ela ficou namorando meses na vitrine da loja mas ninguém pode sentar para não estragar o estofado. Pensei naquela sonequinha de fim de tarde que todo mundo merece,( é que a gata manhosa aqui adora se esparramar pelos cantos da casa. Ai, xô pensamento ruim!), mas seus filhos nunca usufruirão, até porque seria assinar o próprio atestado de morte, caso tivessem a ousadia de pensar em sentar no distinto trono, digo sofá. Lembrei também da Plasma TV e do Home Theater, que os meninos não podem usar para não fazer barulho, uma vez que o som é estrondoso e se ela der uma folguinha que seja, é capaz deles cometerem o doloso crime de fazer pipoca e comerem enquanto assistem filmes. (Hum, melhor nem pensar ou a versão domestica da grande guerra mundial será vivenciada em grande estilo). Pôxa! Sempre pensei que eu era uma boa influência para a molecada. Já estava até me programando pra gente marcar de fazer brigadeiro e comer de colher, direto da panela. Ai que vontade! Mas como eu tenho muito amor à vida, acho bom não abusar. Embora sabendo que, nós felinos, fomos agraciados com sete.
“Gata sem dono!” Caramba! Isso não me saía da cabeça. Mas quer saber? Pensei. E quem precisa de dono? Eu, hein! Durmo o sono dos justos todas as noites, sem necessidade de nenhum aditivo, tranquilizantes ou coisas do tipo. Meu ninho é o mais aconchegante do mundo, me esparramo, me espreguiço de ponta à ponta e, ainda por cima, sou a dona do pedaço. Sou fresca sim. Adoro leitinho fresco, comida “engordiet” e passo horas e horas pulando nos telhados dos sonhos e das fantasias que as ‘mentes saudáveis” insistem em reprimir. Sou manhosa, dengosa e faceira. Mas também arranho se preciso for. É a lei de auto-defesa. Assim ensina a sábia mãe-natureza. Já joguei fora muitas toalhas manchadas, que rapidinho foram substituídas por outras mais bonitas, e algumas até à prova de manchas. Mas em compensação, meu coração ainda tem manchas difíceis de limpar, arranhões difíceis de cicatrizar, buracos que agulha nenhuma é capaz de costurar. Mas esse eu não pude substituir. Não se compra corações 0km, modelo do ano, emplacado e com performance comprovada, pronto pra enfrentar as rodovias da vida.Talvez seja isso o que me impedira de ver a tal mancha da toalha. Ela era muito fácil de ser reparada, enquanto as nossas manchas ainda precisam de pequenos e delicados cuidados para que possamos seguir na estrada.
Pensei nela com tanto carinho. A mancha vai sair e se não sair, sairá da cena pública, a toalha. É assim no mundo dos mercados, na era dos descartáveis. Ao mesmo tempo, agradeci por ser uma “gata sem dono” e não ser prisioneira das etiquetas, das verdades impostas, das saias justas sociais, dos labirintos psicológicos. Agradeci por não ser gata de sangue azul e poder sair por aí, livre dos protocolos, fazendo arruaça, cantando e dançando sobre os telhados de vidros dos seres racionais. Agradeci por minh’alma andarilha, por meu coração cigano e principalmente, por poder vivenciar todas as minhas vidas numa só. O teatro da vida sai por aí. No palco principal, muito luxo e riqueza. É a comédia da vida privada, aberta ao público, mas é nas coxias, sem plumas nem paetês, que pula e batuca o meu pobre coração saltimbanco.
"(...) Mas agora o meu dia-a-dia
É no meio da gataria
Pela rua virando lata
Eu sou mais eu, mais gata (...)"
(História de uma gata – Chico Buarque)