TENHO NOME E ORGULHO-ME DELE !
Nessa sexta-feira, 2 de Julho de 1971, estava na livraria “Figueirinhas”, no Porto, a conversar com o chefe do balcão - o Sr. Ferreira.
Meu pai, quando descia à baixa portuense, passava por esse estabelecimento, a examinar escaparates e a folhear novidades literárias. Tinha peculiar predilecção pelos “monos”, manuseava-os com enternecedor cuidado. Ao seu parecer, entre aqueles volumes, que ninguém queria, surdiam obras de elevado valor literário, mas como foram publicados por ilustres desconhecidos, ninguém lhes dava importância.
Nessa livraria da Praça, encontrava amigos e marcava encontros. A dois de Julho, saíra em minha companhia. Era sobre tarde. Pairava doce chilreio de passaritos, que se recolhiam na ramagem das árvores. O tempo era tépido. Estávamos no coração do Verão.
De súbito, alguém trava o braço direito de meu pai. Era o Sr. Fernando Figueirinhas, um dos sócios da casa.
- Quer conhecer António Lopes Ribeiro? - pergunta, puxando-o para o escritório.
O semblante de meu pai iluminou-se de alegria. Quem não gostaria de conhecer o famoso cineasta, figura popular da televisão!
- Aproveite a oportunidade. Está no meu escritório a tratar dos direitos de autor da sua última obra.
Fiquei só, arrimado ao balcão. Pela larga vitrina observava a corrente constante de pessoas, que caminhavam num animado vai e vem.
Na soleira da entrada, recoberta a mármore branco, garotita, esfarrapadinha , de pés encardidos, oferecia a mãozita rosada , solicitando o tostão, por amor de Deus. Chegavam da praça zoada de claxon, à mistura de ruídos de motores.
Decorreram minutos. Sai da estreita porta de madeira, um homem, de elevada estatura, esguio, aprumado, de faces envelhecidas – era António Lopes Ribeiro. Junto, vinha meu pai: baixo, cheio, de sorriso aberto
Estancaram junto a mim. Feitas as apresentações, prosseguiram em animada palestra.
Falava-se do “O Pátio das Cantigas” - Ó Evaristo!, tens cá disto! - dizia, acompanhado de surda gargalhada , o cineasta, e meu pai, sacudindo-se todo, soltava estridente risada. Aproxima-se então o Sr. Ferreira, atraído pela conversa. Também ele queria ver de perto o Homem do “ Museu do Cinema”
A prosa estava animada. Veio à baila o maestro António Melo. Logo recordei, de memória, a figura encolhida, envergonhada, que aparecia na TV e apenas dizia “Boa Noute”; expressão repetida, entre risos, pelos telespectadores.
Com duas palavras, tão prosaicas, granjeou popularidade invejável!
Meu pai falava-lhe de “O Comércio do Porto”, de Manuel Filipe, e de Costa Barreto - o homem do cachimbo, - como eu lhe chamava. O cineasta, que acabara de publicar “ Anticoisas & Telecoisas”, abordou, com ligeireza, o acicate do tio Francisco, e desertou, com muita graça, a ingrata missão de colaborar na imprensa. Fez-se de repente curto silêncio. António Lopes Ribeiro avizinha-se ainda mais de meu pai e em voz severa, disse:
- Ó Sr. Pinho da Silva, queria-lhe pedir um grande favor…
Meu pai apruma-se, encara-o de frente e aguarda surpreso.
- Trate-me pelo nome. Sou António Lopes Ribeiro e não um doutor. Tenho nome e orgulho-me dele!
Meu pai ficou embasbacado. O Sr. Ferreira - encarregado do balcão, - que assistia à cena, escancarou a boca como púcaro destapado, e eu disse de mim para mim: Então chamar de doutor não é uma deferência?!
Mas, o cineasta, prosseguiu, com sorrisinho dançando nos lábios:
- O Sr. Pinho da Silva já reflectiu que os grandes homens não são chamados de doutores? Veja o Egas Moniz! Alguém chama, a esse grande médico, de doutor?!
Todos concordamos. Como não havíamos de concordar, se era assim?! E o cineasta, continuou:
- Não é que seja ofensa, pelo contrário; mas, que seja doutor quem gosta de o ser. Eu prefiro: António Lopes Ribeiro!
O Sr. Fernando Figueirinhas junta-se ao grupo, e corta a prática, solicitando nova ida ao escritório, para ultimar o contrato.
E eu permaneci, de olhos esbugalhados de espanto e admiração, a ver esbater-se, na penumbra interna da livraria, aquela figura tão familiar da TV. O Homem do “ Museu do Cinema”, o Homem do cinema Mudo.