A sala de aula (Remodelada)

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Estou sentado na última carteira da coluna da direita. É hora de prova. Os alunos estão temerosos, apreensivos. Afinal, é prova de Matemática: Trigonometria.

Resolvi aplicar prova extra, relâmpago, e agora os observo, enquanto copiam as últimas questões. O levantar e o baixar de cabeças lembra um balet anacrônico[1], mas interessante. Os movimentos das cabeças copiando, olhando para o quadro, voltando a copiar. A rítmica entre os movimentos que buscam o quadro e o caderno é extasiante[2]!

D. Eloiza, professora atenciosíssima da Escola Maria Auxiliadora, uma das primeiras onde estudei, costumava nos observar durante as avaliações. Ela parecia deliciar-se com esse frenetismo[3] discente. Esporadicamente, ela comentava acerca da graça existente em nossos trejeitos e agonias... “Quando forem professores” – dizia – “busquem os detalhes nos seus alunos, pois em cada olhar pode existir um pedido de ajuda, de aconselhamento, estando em vocês, por vezes, a última esperança, o ultimo alento”. Como aluno, as lições da saudosa tia não faziam tanto sentido, mas agora, na posição de educador, percebo a profundidade enxertada na simplicidade daquelas palavras não tão distantes no tempo.

Estão me procurando.

Os alunos das primeiras carteiras parecem muito mais à vontade: gesticulam, mexem de um lado para o outro – pendulando. Pensam que sumi; os mais próximos não ousam movimentos tão bruscos.

Existirá algo de errado com o teto? Por que alguns olhares estão sempre voltados para o alto? Talvez tentem buscar soluções lúdicas[4] para os problemas, e que problemas!

– Professor?

– Eu.

– Na quarta questão, é seno de B?

– É. Ei, olhe pra frente, rapaz! Alguma dúvida? Atenção, turma. Quaisquer que sejam as perguntas dirijam-se a mim. Não quero ouvir conversas paralelas, entenderam?

– Já pode entregar?

– Só a partir das dez e meia.

– Não fiz nenhuma questão, professor. Não sai nada. Estou em estado de total paralisação. ‘Colei as placas’, legalzinho mesmo!

– Tente mais um pouco. Enquanto isso, aguarde o momento de entregar a sua prova.

Penso nos “tipos” exóticos e peculiares da sala, de todas as salas, talvez. Não visitaríamos as salas do mundo, exaustivamente – parece impossível –, mas certamente, em todas, encontraremos o palhaço, o sonso, o feio, o gordinho, o “cdf”. São adjetivações definidas pelo artigo porque todos eles merecem destaque e ficarão em nossas mentes. Na vida estudantil e na pessoal, inclusive, somente quem nos causou algum tipo de novidade, somente quem nos causou alegrias profundas ou ojerizas[5] marcantes é que permanecerá conosco, mesmo depois da ausência. Os alunos comuns e os professores meia-boca, também estes serão esquecidos na esquina, ao lado da escola, logo na primeira curva. Agora, entretanto, todos esses estereótipos[6] se confundem e o silêncio quase melancólico[7] os nivela, eliminando as nuanças[8] que os tornam tão únicos... Ah! Esqueci-me do tímido, perdão.

O palhaço da sala está tão tristonho. Será que não consegue brincar na hora do verdadeiro show? Talvez não seja este o seu tablado, o seu palco iluminado. Luzes, agora, apenas as do teto que ele insistentemente não cansa de observar.

O sonso olha para os lados. Foi a atenção dele que chamei quando pedi para que olhassem para frente. Sabe aqueles alunos que não suportam estar sozinhos consigo mesmo na hora da prova e precisam, mesmo, da companhia de alguém? O sonso era assim, um genuíno[9] dependente do conhecimento alheio. E nessas horas, se o professor facilitasse, ele se apoderava mesmo!

O feio e o gordinho estão ladeados. Olhando-os, assim, tento compensar os excessos de ambos. São excelentes pessoas: este é engraçadíssimo (e não palhaço); aquele, lacônico[10] e esquivo[11] (e não sonso).

Ah, o tímido. Está ao meu lado, bem à minha esquerda. Não o vi escrever nada, ainda. Será que minha presença tão próxima o incomoda, impedindo-o de escrever? Ele não se daria muito bem com o calor humano tão bem difundido e defendido pelo nosso querido Henfil. Quem sabe umas aulinhas de socialização... Darei rápida passada em torno da sala, talvez minha aparente ausência o liberte do sofrimento.

Busco outro ponto privilegiado de observação e estaciono, exatamente, à direita do “cdf”, um pouco atrás dele. Vou observá-lo. Está alheio a tudo. Desde que recebeu a prova não para de escrever: risca, rabisca, refaz cálculos, demonstra teoremas. Está desenvolvendo a expressão genérica para o cálculo do ângulo entre os ponteiros de um relógio. Não se contentou com a minha demonstração (pareceu-me isso) e quer fazê-la na prova, deixá-la gravada a seu modo. Seria afronta[12] aos meus ensinamentos ou rebeldia peculiar[13] aos gênios?

– Já pode entregar, mestre?

Mestre! É incrível como o professor passa a ter importância na hora da prova! Esse aluno nunca me havia chamado assim. Passa a aula inteira dormindo! Agora sou o mestre! Mestre?

– Sim, podem entregar.

Apressados, muitos se levantam, partindo em minha direção, aos atropelos e empurrões, como uma manada sem direção.

– Calma! Calma! Um de cada vez.

– Que prova horrível!

– Não estudei nada.

– Vou tirar zero.

– Silêncio! A prova ainda não acabou.

– Gostou da prova? – perguntam, ironicamente, ao “cdf”.

– Claro. Estava uma água! Demorei um pouco porque demonstrei tudo! Esse professor só passa prova fácil! Se soubesse que seria assim nem teria estudado tanto.

Faltam dez minutos. Faltam dois minutos. Falta um minuto...

– Atenção, turma! Acabou o tempo!

Levanto-me e vou recebendo as provas dos últimos alunos, dos retardatários. O palhaço me entrega a prova em branco, parece que não decorou o texto. O sonso, um tanto sério, entregou-me a dele também. O feio e o gordinho entregaram-me as provas num pacote só; eram duas boas pessoas, mas as provas estavam aparentemente péssimas.

– A prova acabou! – Digo, por fim, ao tímido.

Ele se levanta, dirige-se até onde estou e, cabisbaixo, entrega-me a prova em branco.

Dias depois, no sepulcral intervalo de tempo compreendido entre a realização e a entrega da prova, chamei o tímido em particular, ao final da aula, e confidenciei:

– Você foi o aluno mais regular da turma, meu amigo: manteve o zero!

Ele sorriu, meio sem graça, retirou-se da sala e nunca mais voltou.

Hoje, quando é dia de prova, continuo a observá-los sob a ótica, felizmente, da inesquecível D. Eloiza.

(Nijair)

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[1] adj. Que está em desacordo com os usos e costumes de uma época; anticrônico. Antiquado, obsoleto, retrógrado.

[2] Extasiar: v.t. Causar êxtase a; arrebatar, enlevar: espetáculo que extasiou o público.

V.pr. Cair em êxtase; admirar-se; deleitar-se; maravilhar-se.

[3] Impaciência, paixão

[4] Divertidas, que distraem

[5] Aborrecimentos, antipatias.

[6] s.m. Comportamento desprovido de originalidade e de adequação à situação presente, e caracterizado pela repetição automática de um modelo anterior, anônimo ou impessoal. Art. gráf. Forma de impressão em que os caracteres estão fixos e estáveis; clichê, matriz.

[7] Triste, tristonho.

[8] s.f. Cada um dos diferentes matizes que pode apresentar uma cor. Diferença pouco acentuada entre coisas do mesmo gênero. Grau de intensidade que convém dar aos sons; matiz, entretom

[9] Autêntico, verdadeiro

[10] adj. Conciso, breve, resumido, à maneira do estilo dos habitantes da Lacônia: resposta lacônica.

[11] Quieto, calado.

[12] s.f. Injúria pública; ofensa, ultraje: sofrer uma afronta; dirigir afrontas aos amigos.

[13] adj. Que é próprio de alguém ou de alguma coisa; que constitui atributo característico de alguém ou de alguma coisa. Relativo a pecúlio.

Nijair Araújo Pinto
Enviado por Nijair Araújo Pinto em 15/02/2011
Reeditado em 06/09/2011
Código do texto: T2794185
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