Efeito do mar e o mal

Se o corpo fosse um aquário da alma mergulho meus pés na água salgada do mar atlântico. O mar encapelado do sul aprimora a calma sobre a minha concisa pressa urbana. O espírito marinho tem algo de suave cálice contra o escárnio da vida. Espécie de eloquência discreta transformando qualquer megalomania numa ciranda de pensamentos simples. Ocorre a descapsulação do homem de terno e gravata rendido pelo espaçamento das férias num mundo forçado em calção de banho. Consumindo a necessidade de abastança, com os olhos percorrendo a oferta de trilhões de seixos, conchas, minúsculos fragmentos imersos na água transparente. Dão aos olhos uma riqueza momentânea.

A seminudez sem-cerimônia secretamente renova o recalcamento de muitos amores. Mesmo calado e reverente é o mar quem reumaniza o vermezinho das leis em tempo vago. Sabe operar o milagre da delicadeza em seu gigantismo de espuma alcançando nossos pés. Esse paraíso em férias persuade até o mais torpe dos homens. Acalma o descontentamento para não lhe afundar nas águas turvas da loucura.

Num aprendizado de ciclos as ondas aos poucos começam a reencenar os reflexos diários. A consciência refermenta dores da leviandade no ar desses pescadores de ocasião. Esses famigerados que carregam a família para um evento estúpido e cruel. Pescaria distinta daquela que se necessita para aniquilar a fome. O grande pescador de verão fisga minúsculos peixes como se Netuno fisgasse seus bebês num ato de impiedade.

A cena é a mesma de sempre: uma pobre alma acena repelindo a morte em tristes contorcionamentos e ninguém liga. Acaba por expirar entre aplausos da grande família humana desinteressada do mundo. Seu canto é um só: quando eu morrer o mundo pode se acabar. Mal desbota o sol e retornam a procura de nova dose de entorpecência diante da TV que envaidece o senso de conhecimento rápido. O peixinho estirado pela vingança tantalizante não despertará senão opalescência lucilante esquecida como dejeto na areia. Escuto nessas mortes prematuras, uma dolorosa confidência.

Tércio Ricardo Kneip
Enviado por Tércio Ricardo Kneip em 15/02/2011
Reeditado em 22/06/2020
Código do texto: T2794004
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