Efeito do mar e o mal
Se o corpo fosse um aquário da alma mergulho meus pés na água salgada do mar atlântico. O mar encapelado do sul aprimora a calma sobre a minha concisa pressa urbana. O espírito marinho tem algo de suave cálice contra o escárnio da vida. Espécie de eloquência discreta transformando qualquer megalomania numa ciranda de pensamentos simples. Ocorre a descapsulação do homem de terno e gravata rendido pelo espaçamento das férias num mundo forçado em calção de banho. Consumindo a necessidade de abastança, com os olhos percorrendo a oferta de trilhões de seixos, conchas, minúsculos fragmentos imersos na água transparente. Dão aos olhos uma riqueza momentânea.
A seminudez sem-cerimônia secretamente renova o recalcamento de muitos amores. Mesmo calado e reverente é o mar quem reumaniza o vermezinho das leis em tempo vago. Sabe operar o milagre da delicadeza em seu gigantismo de espuma alcançando nossos pés. Esse paraíso em férias persuade até o mais torpe dos homens. Acalma o descontentamento para não lhe afundar nas águas turvas da loucura.
Num aprendizado de ciclos as ondas aos poucos começam a reencenar os reflexos diários. A consciência refermenta dores da leviandade no ar desses pescadores de ocasião. Esses famigerados que carregam a família para um evento estúpido e cruel. Pescaria distinta daquela que se necessita para aniquilar a fome. O grande pescador de verão fisga minúsculos peixes como se Netuno fisgasse seus bebês num ato de impiedade.
A cena é a mesma de sempre: uma pobre alma acena repelindo a morte em tristes contorcionamentos e ninguém liga. Acaba por expirar entre aplausos da grande família humana desinteressada do mundo. Seu canto é um só: quando eu morrer o mundo pode se acabar. Mal desbota o sol e retornam a procura de nova dose de entorpecência diante da TV que envaidece o senso de conhecimento rápido. O peixinho estirado pela vingança tantalizante não despertará senão opalescência lucilante esquecida como dejeto na areia. Escuto nessas mortes prematuras, uma dolorosa confidência.