A torta

Wilson Correia

Havia nascido há menos de década. Agia como se contasse um século. Era Mara. Fazia-se possuída pela compulsão dos próprios caprichos. Em casa, na rua, na escola, à beira dos rios onde todos pescavam e se divertiam, até no catecismo, até durante as missas de domingo, lá estava Mara a lançar artifícios arquitetadíssimos para se dar bem. Numa segunda-feira, enquanto se encaminhava para a escola, teve a merenda arrastada pela correnteza que quase a engoliu de roldão. Chegou à escola de mãos abanando, fato que a fez matutar no anterrecreio como se safar no intervalo. Quando bateu o sinal para o lanche, Mara executou o seu plano com mestria. Ninguém notou quando ela, tomando para si a lancheira de Clara, fingiu cuspir sobre os quitutes da coleguinha. Na verdade, ela havia cuspido fora da lancheira, mas Clara não chegou a perceber o engodo, dado o malabarismo que Mara fizera movimentando mãos, boca e lancheira. Ao ouvir de Clara a ordem “Agora coma seu cuspe”, Mara fez a festa, regada a sarcasmos que só os frios, calculistas e piores algozes do mundo podem experimentar. E não parou aí. Prosseguiu nessa trilha vida afora, para espanto de todos quantos, lúcidos, deparavam com a amarga ao longo do caminho. Aliás, era sobre Mara que a professora primária sempre dizia, assertivamente: “Há gauches nesta vida que nem Deus se interessa por consertar”.