Dona Ana
A vida não poderia surpreender mais, este rosto queimado de sol e enrugado como folha ressecada. Por isso é que Ana Maria seguia seu caminho, de terra batida e vermelha, em direção ao pasto, sem alarme e sem surpresa. Para encontrar como sempre as duas magras rezes, e com elas trocar uma ou outra confidência, sobre o plantio do milho e sobre os filhos espalhados pelo mundo. Doze, ao todo.
Ana Maria não lia nem escrevia, mas sabia contar como ninguém, e se orgulhava de saber de cor, mais de cem versos para desafiar a qualquer cantadora metida a besta. E como cantava...Sua voz estridente, em noites de São Miguel, retumbava por todo o vale, assustando os animais noturnos. E o canto servia para espantar também o Cão Danado. Mas ela não tinha medo do diabo. Até o desafiava, quando de madrugada tinha de se levantar na escuridão, para atender alguma parturiente, ou para curar alguém que se encontrava nas últimas.
Senhora séria , quase nunca sorria, pois excesso de sorrisos não era coisa de viúva que se dava ao respeito. E assim, com a cara marcada pelo sol, pela felicidade sazonal e por alguma cachaça em noite de folia, é que viveu a vida, criou filhos, enterrou um marido infiel, e continua a marchar por esses campos escondidos e esquecidos pelo mundo.
Há quem não goste dela. Mas ela não se preocupa com isso. Muita gente gostando, para ela, é sinal de coisa que não presta. Por isso, o beiço sempre franzido e o ar de inatacável. Porque por mais pedradas que levasse, sabia que o importante era o que havia entre ela e Deus. O resto que se lascasse.
E não tinha medo de gente também não. Não pensou duas vezes ao expulsar a cabo de enxada, uma moça de vida aerada que um de seus filhos havia trazido da capital. Mulheres como Dona Ana, não se enganam. Bastaram 5 minutos de conversa para ela perceber o que era a tal criatura. Depois do episódio, o filho nunca mais retornou à casa de sua mãe. Ela se fez de forte. Mas no fundo, ela sente pesar. E também sabe que a vida é feita de escolhas. Cada um sabe de si.....
Em noites sem nenhuma novidade, dona Ana se senta na porta de sua casa, com um cachimbo na boca, e contempla o gramado, que morre no começo da serra. Sua vida era contemplar, desde criança, aquele monte pedregoso. Algumas vezes, quis saber o que havia atrás daquela serra. Mas por outro lado, sabia que as coisas já eram por demais difíceis ali. Não precisava buscar problemas fora. E agora, aos 75 anos, já se preparava para morrer. Não tinha que se meter em aventuras bestas.
E por ser a quase hora da morte, é que já encomendara seu caixão, e deixara algum dinheiro guardado, para nenhum parente ter de reclamar que teve de gastar uma fortuna no enterro da velha. Ana Maria seria a última pessoa a querer ficar falada como caloteira. Sempre comprou e pagou a vista, para sem-vergonha nenhum dizer que ela era devedora. Se quizessem falar dela, que inventassem outra coisa.
Toda vez que olha a serra, Ana Maria se lembra de sua avó Querubina, que cantava como ninguém. E tocava sanfona como nenhum homem. E ela se lamenta que muita coisa já não é mais como antes. Talvez fosse hora de morrer mesmo. Muita coisa já foi vista, e ela não queria ver mais nada.
Mas quem pode tirar a vida, é somente Deus. Por isso, melhor esperar a morte sentada, sem precipitações. Ana Maria estava convencida que para o inferno não iria. E por isso mesmo, nem cogitava a hipótese de dar cabo de sua própria vida.
Mas em sua boca, sentia o gosto do fel, toda vez que se via condenada a viver só. Via os filhos indo e vindo, os companheiros de cantoria aparecendo duas vezes por ano e a sanfona eternamente calada sobre a mesa antiga de Dona Querubina.Isso valia um suspiro.
E enquanto o tempo passa, ela vai cantando pela estrada de chão batido. Não sente falta de conhecer mais nada. As pessoas já a haviam ensinado o essencial da vida. A apanhar e a bater, a tomar um trago de pinga e a fazer cara de brava, quando algum boi bravo entrava em seu pasto.
Não se pode exigir da vida, mais que sua possibilidade. Porque assim é que Deus escreve as coisas. E enquanto aperta sua medalha de São Miguel, faz uma oração que ela já tem decorada desde menina. Servia para livrar do mal e para curar doenças. O mal, este, não se aproxima mais. E a única doença que tem, esta, não tinha mais cura. É a saudade. Daquela mais triste. Das coisas que se foram para sempre.
Mas há o que se ter para alegrar. Há um copo de café e há farinha por fazer. Enquanto houver força nos braços e nas canelas, ainda haverá o que ter, para sorrir por dentro. Mesmo que a cara amarrada queira dizer o contrário.