ERA AFETO PURO
Há espaços vazios na memória quando se fala em infância. Entretanto, há cenas que foram marcantes. Pinçamos fragmentos e as emoções se atualizam. Vem à lembrança instantes de felicidade. Acho que tinha por volta de cinco ou seis anos. Cedinho éramos acordados, eu e meu irmão e, talvez até de pijama, neblina presente e um friozinho, para irmos ao curral em uma fazenda, distante talvez a um km. da minha casa , para tomarmos leite quentinho tirado da vaca. Havia todo um ritual na preparação: saquinho de açúcar e outro de toddy. Agarrados na mão de papai, embevecidos por este momento de ternura e afeto, íamos ao encontro do prazer gustativo, da aventura, da amizade de meu pai com o fazendeiro e do que a natureza ofertava.
Papai era investimento total nos filhos. Sentia prazer em acompanhar, em proporcionar alegrias levando-nos a Recife, ao Parque da Jaqueira, para conhecemos brinquedos diferentes, no período natalino. A viagem era quase um dia inteiro de União até Recife, mas o trem era bom, o restaurante também , além dos vendedores de maçãs e uvas-passas que contribuíam com a nossa alegria. Costumava acompanhar a gente às matinês, no cinema. Aos domingos, como era apaixonado por fotografias, tanto íamos ao Foto tirar aquelas fotos com um profissional, todos bem vestidos e arrumados, como ele saía com sua Kodak tirando nossas fotos pelas ruas de União.
Um grande presente que dele ganhei foi uma bicicleta e, aos domingos, seu único dia de folga, me levava à Praça Jorge de Lima, eu com seis para sete anos, para me ensinar a andar de bicicleta; a invenção das rodinhas de apoio veio depois. Pacientemente ficava me segurando, empurrando até que eu conseguisse o ponto de equilíbrio, saindo sozinha com o domínio do meu corpo para passear e andar pelo mundo. Era meu divertimento predileto. Andava só, com meus irmãos ou com minhas amigas. Solta pelas ruas, gostava de sentir a velocidade, o vento batendo no meu rosto e entrar por meus longos cabelos. Puro prazer! Aos domingos convidava algumas amigas e pegávamos a estrada de barro para o sítio Muquém, uma vez que a filha do don0 era balconista da loja do meu pai. A comunidade em que ficava o sítio era de quilombos e muitos demonstravam gostar em me receber. Margeando o rio Mundaú, indo pela rua Jatobá, chegávamos para tirar goiabas nos pés. A volta era meio penosa, porque o sol já ia alto, a sacola com as frutas pesava e o cansaço começava a ser sentido.
O gosto por andar de bicicleta está lá atrás. É só vasculhar que se descobre porque gostamos das coisas, pois os registros denunciam as origens de quase tudo. Já com meus filhos entrando na adolescência, nos finais de semana passados na Paripueira, e isto era constante, saía nas noites de sábado chamando os filhos de Ivan e Jó Cardoso, de José Matias e Liu, de Edson Novaes e Josefina, além dos sobrinhos destes meus amigos. O “grupão” todo ganhava as ruas da cidade, passeando por ruas escuras, claras e uma animação só. Às vezes os meus companheirinhos de aventura tinham o direito de dar uma parada num barzinho da orla para tomar refrigerante e comer batatas fritas. Qual a criança ou adolescente que não gosta? Seguíamos o passeio tendo as estrelas, raramente a lua, por testemunhas. Esperar um outro sábado com ansiedade é o que acontecia.
Quando converso com várias amigas sobre andar de bicicleta, escuto muitas declarações de frustração por não terem aprendido a andar. Nestas horas, e também em outras, sinto que meu bondoso pai me fez uma privilegiada e sua vida era afeto puro.