FLEUMA
NOITE FRIA DE JUNHO, eu sob o alpendre contando estrelas, pensamento longe. Você olhando fixamente a fogueira no terreiro. Nesta noite, apenas divagaríamos. Você recusou-se a jogar “War”, por ser longo demais. Eu então tomei uma garrafa de vinho italiano, lembrando farras num hotel em São Lourenço. Coisas que você nem imagina. O silêncio atordoante fez-me pensar que estrelas emitem sons. Como algumas palavras refletem luz. Então percebi seus olhos fixos em mim como se eu pudesse ampliar minha visão periférica. Isso eu aprendi no teatro. Algumas coisas a gente não esquece. Esqueci sim, do seu último aniversário e isso lhe encheu de fúria. Ainda que você não tenha falado nada. Eu sei. Você nunca fala. Minha memória não é meu ponto mais forte. Ainda que para datas e números. Por isso jogo palavras cruzadas. Suponho que eu nunca tenha lhe amado, que você nunca tenha existido de fato e seja apenas convenção. A culpa é de quem? Não somos capazes de “ler” o que as íris dizem. Então, o silêncio retruca. Você abaixa os olhos, vira o rosto. Talvez alguma coisa incomode. Acendo um cigarro e o trago calmamente “Essa merda ainda acaba comigo”, por fim resolvo arriscar e puxo assunto: “Noite fria, não?”. Silêncio. “Achei que seria bom conversarmos, há tanta coisa...”. Silêncio. Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez segundos depois – que poderiam ser horas, dias, meses, anos, sei lá, dez segundos depois tomo coragem e desafio: “Onde foi que erramos, pai?” Você então vira o rosto. Os olhos marejados. Acho que não precisamos dizer mais nada.
wallace puosso / jul 05
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