O CÚMPLICE DE LORETA

Loreta era quem mais gostava do ano novo naquela família. Na verdade, ela gostava mesmo é do início das aulas e dos cadernos novos. Filha caçula tinha mais três irmãos que sonhavam um dia jogar futebol em time grande.

A história deles é curta. Um entrou na escola militar, casou moço e aposentou na polícia. Outro forjou casamento de papel passado com uma neta de japonês para trabalhar no Japão, ganhar em dolar e voltar ao Brasil. Não voltou. Morreu em um terremoto. E por fim, o mais velho, abriu um mercadinho no bairro. Prosperou e hoje é dono de casa na praia, onde passa a maioria dos dias. Nenhum vriou jogador de clube de elite.

A sina de Loreta, a menina que sonhava com o primeiro dia de aula, foge do trivial. Um prazer sem explicação tomava conta dela ao abrir a primeira folha de um caderno. Olhava sua brancura riscada pelas linhas que esperavam suas palavras. Pousando as mãos sobre a folha, suspirava o cheiro de papel novo e sonhava com as letras. Ela sabia que estava diante de algo que seria mais que um amigo durante o ano, seria seu cúmplice.

Nos cantos das páginas, escrevia suas obrigações na lida de ajudar no cuidado da casa e do avô doente. Sabia que a rotina da vida era uma bebida sem gosto. Para dar sabor aos seus dias, cuidava de comprometer-se com as palavras em seu caderno. Combinava com elas que faria o necessário, mas quando possível iria alem. Levar o avô para a quimioterapia era preciso. No caminho e na espera da vez, fazia algo a mais enchendo o ouvido e coração do velho com histórias de cavaleiros e dragões libertando povos oprimidos. Na cozinha de todo dia, cortar cebolas transforma-se na arte de deitar anéis de cristais sobre saladas de encher os olhos.

Enquanto isso, a caneta ganhava as bordas do caderno e páginas escondidas traçando como fazer o melhor possível para aqueles dias. Entretanto, para o futuro mais distante, as palavras vestiam-se de profecia, pintando um quadro praticamente impossível para aquela adolescente mirrada.

Mais tarde conheceu Genésio que fazia campanha para vereador. Genésio ganhou a eleição e a Loreta como namorada. Noivaram e casaram enquanto a carreira do político subia como rojão de São João. Virou diplomata e foi morar com a esposa na Europa. Na terra do povo de olhos e pele clara, Loreta escreveu livros e mais livros para crianças, ao lado de seus cadernos, cúmplice do necessário, do melhor possível e do impossível.