O Sonho da Piscina

O Sonho da Piscina

 

 

O melhor da piscina era o céu. Como em todo sonho, alguém reclamava porque eu tirava as folhas da água com as mãos e, em decorrência disso, a poeira do fundo levantava e turvava o anterior azul cristalino. Não sei quem era essa pessoa. Resta a impressão de ter estado ali antes, e de ter permanecido horas e horas, antes, ouvindo pássaros de raro canto. Parecia que conversavam, pareciam membros de uma banda exótica que só se apresenta em pequenos locais, cada qual com seu instrumento, todos somos instrumentos, todos ressoamos.

 

Não acredito na piscina como fruto do calor, embora eu me sentisse livre dentro dela e tudo relativo à infância, as uvaias e as pitangas caídas no chão, a frescura do ar e a tonalidade do céu competiam para me dizer que seria possível ser livre outra vez, bastava apenas que me aquietasse.

 

- Ressoe criatura, e agradeça a sua vida – diziam os pássaros.

 

Com três braçadas chega-se de uma ponta à outra e com um pouco de cautela toca-se na borda. Resolvi esticar as pernas em terra e me deparei com um salão cujas portas de vidro semi abertas iam do chão ao teto. Ou do teto ao chão.

 

Nada era estranho, a pessoa que reclamava das folhas desapareceu e dentro do salão os mais variados objetos estavam recostados.

Decerto foram importantes para alguém e agora se comportam como velhos num asilo. Estão estacionados dessa forma porque quem os possui ainda não se desfez inteiramente deles: duas bicicletas, um skate, um teclado musical, monitores de computador, caixas com etiquetas, pilhas de livros e, atrás de tudo, os quadros. Acho que nesse instante me dei conta de estar num sonho e resolvi nadar de novo. Nossos movimentos reúnem parca clareza nesse tipo de situação.

 

Outra pessoa apareceu, eu não entendia o que falava, pois meus ouvidos estavam dentro d‘água, meu corpo boiava sob o azul deste mês e som nenhum atrapalhava, som nenhum existia e só depois percebi meus pulmões trabalhando. Ela me oferecia alguma coisa. Nos sonhos pouco identificamos corretamente de quem se trata através da fisionomia. Todos estão escondidos e quem os desmascara é a qualidade do nosso afeto.

 

Convidei-a para sentar comigo na beirada, poderíamos conversar enquanto o sol partia, ela saiu sorrindo, sem dizer que sim nem que não. Tivesse eu a oportunidade e lhe contaria sobre fevereiro.

 

Retornei ao salão. Os quadros. Eles não poderiam estar ali. Grandes, coloridos, representaram um trecho das coisas, foram, como dizer, a identidade visual de uma época e posso mesmo atestar que estiveram inclusive vivos. Agora jaziam.

 

Pouco se pensa num sonho.

 

Tornei à piscina. Fiquei na dúvida se havia ou não aberto um armário e não ter sentido a menor estranheza ao me deparar com objetos que foram meus há 15, 20 anos. Ora essa, vieram parar aqui como quem pede emprestado alguma coisa num sussurro, você empresta sem perceber e além do mais esquece. Objetos que tiveram uma importância capital, que tipo de empréstimo teria sido esse? Fechei o armário sem pensar no assunto, a água estava morna, os pássaros gritavam: ressoe criatura!

 

Não há correnteza na piscina, seus movimentos determinam para onde deve fluir a energia e a sensação de cessar os movimentos, de súbito, traz algo de doce, feito a ventura de mudar o destino, parar o tempo e afugentar a velhice.

 

Outra pessoa apareceu e seus olhos cintilavam. Existem mais mulheres do que se pensa. Ela me disse que teríamos de partir, pois dentro em breve os donos chegariam.

 

Não me importei. Uma casa daquelas jamais poderia ser minha. Saí, como sai o ouro depois do ourives. Inexistiam portas para trancar ou portões para fechar. Saí como o rio que sai de si mesmo e entra no mar. Dei uma última olhada. Respirava com conforto e os pássaros não se cansavam de repetir.

 

Todos os textos sonham.



(Imagem: Dennis Ekstedt)

 

Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 10/02/2011
Reeditado em 27/02/2022
Código do texto: T2783904
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