O som da vida
O som da vida
Para os mais afortunados a vida começa com um tum, tá ouvido diretamente do coraçãozinho que possuímos enquanto ainda estamos no ventre materno. Maravilhas da tecnologia? Chamem do que quiserem, mas ainda assim a vida começa aí, nessa luta inicial do corpo em prol da vida. O ritmo do coração se faz perceber, verte lágrimas, causa espantos, como um violino que de repente começa a ressoar e você fica hipnotizado.
Mas, desse nível, não estamos ouvindo a vida e sim a produzindo, para que outros a ouçam, estamos dando essa prova cabal para o mundo que começamos a nossa existência. Mesmo que ninguém escute, pelo menos nos mexemos dentro da barriga e isso já é uma causa cabal de alegrias e sons, e mais sons. E a música é isso, produção de uns para deleite dos outros, como o músico que de tão concentrado em dar o melhor de si não ouve a própria canção.
E do caos viemos. Da barulhenta vinda. Perceba o nascimento, aquele momento máximo, aquele ápice dissonante em que gritos e dores rasgam o silêncio trazendo sons desconexos à tona como que dando a matéria prim(a)ordial em prol de nossas futuras composições. Joga tudo aí, larga, depois alguém vai utilizar isso para fazer algo, o algo é a nossa vida, a vida de cada um, cada particularidade, a música continua, firme e forte.
Cada um vai arrumar suas notas, em suas pautas. Vai cabe a cada um tornar a composição suave, rítmica, estridente, e como existem composições estridentes, percursiva, quem sabe fazer um accapella, ou viver em seu eterno e infindável solo. Vai depender de cada um tentar usar com máximo primor o instrumento que tem. O que, particularmente, hoje vemos pouco compositores. Eu, mais particularmente ainda, vejo muitos daqueles que vivem de aproveitar a música alheia, “ei! esse som aqui, eu quero ele, muito bom”, ou então “nossa, como você faz isso? ensina?”
Quanto maiores ficamos menos tendemos a tentar, ousar, experimentar um novo uso da baqueta, um acorde a mais e por total inércia e comodismo vamos (re)tocando nossa mais singela e usual canção, cada vez mais sem graça e no automático. Como um cantor em fim de carreira que faz shows por todos os motivos menos o de querer tocar.
Pior! Temos muitos daqueles que querem ser ouvidos, eles não se contentam em tocar sua vida, em ressoar a própria existência. Percebam! Ouçam! Mas que cambada de idiotas, ninguém me ouve! Pobre daquele, pobre desse. Nem um é capaz e tocar por tocar e nem o outro é capaz de escutar o som do outro, e complementando, nenhum som é ruim, apenas estamos mal acostumados com sua presença. Música é costume, acostuma-te a ouvires isso ou aquilo e já já lhe parecerás lindo.
Ao contrário da vida, a música é sim costume, mas para os ouvidos e não para a ação. Aja! Toque sua sinfonia, faça seus solos de vez em quando, arrisque aquela variação, altere o compasso, brinque de regredir ao minimal, faça extravagâncias sonoras, mas não esqueçamos que ainda estamos tocando nossa música, não para ninguém, mas por nós, por tocar, para a ação, simples, de tocar. E muitas vezes temos que parar, cruzar os braços e ouvir o que os outros estão compondo, tocando, interpretando. Para que não fiquemos surdos, ou desacostumados com novos ritmos, novas nuances, novos meios de fazer o som da vida.
Riso
Palmas
Sapatos ressoando nos vários tipos de chãos
O farfalhar das árvores
O som do metal girando logo antes da água cair
Aquele silêncio que precede o portão bater
O girar da chave
Uma bela canção
O murmurinho dentro de um ônibus
O ladrar do cão
Uma buzina de automóvel
A pedra de um isqueiro
Moedinhas tilintando conjuntamente
O estourar da pipoca na panela
O pi pi pi final do microondas
Aquele som delicioso de página de livro sendo virada
O som da própria vida, o silêncio, há de ser escutado, também, como melodia, a mais básica. Sim! Conseguimos ouvir o silêncio. Naquela noite em que nada se move, não há ventos, não há barulhos, estamos sós, naquela aparente in-atividade do mundo, ele gira, tente ouvir o mundo girando!
Cabe a cada um compor sua própria melodia. Com-pôr sua própria sinfonia. Há aqueles que preferem apenas um bom assobiar. Ainda aqueles que preferem estalar dedos.
Toque, componha e ouça. Se fores sincero, como a vida pode ser ruim?