Dizem os entendidos que Deus não nos dá um fardo maior do que aquele que podemos carregar. Sei que Ele, como pai, não quer o mal dos filhos, mas bem que ele podia ter posto umas rodinhas na nossa mala de carregar fardo, carregar mal-hmor da sogra, incom-petência dos colegas, etc. A respeito desse assunto, tenho uma crônica que lhes passo agora.

A TENTATIVA

A mulher de João foi embora com o açougueiro. O patrão de João mandou-o embora do emprego. A sogra de João resolveu morar na casa dele. O seu problema de gota estava cada vez mais crítico e, para piorar, o Flamengo perdeu feio. Realmente só lhe restava uma saída: suicídio. Olhou pro céu e disse: Jesus, eu quero morrer.
A cabeça de João, que não era uma das partes mais privilegiadas do seu corpo, começou a funcionar, precariamente como era normal.
Vou comprar uma corda e me enforcar.
Saiu à procura de uma loja onde pudesse encontrá-la. Andou até ficar com os pés em bolha. Por fim en-controu uma loja que mais parecia uma loja aban-donada de tanta poeira que tinha. Tudo ali parecia mais velho do que o dono matusalênico.
- Dois metros de corda, por favor.
- Que tipo de corda o senhor quer?
- Qualquer uma, desde que seja forte.
- Aqui está.
João saiu e foi até sua casa, onde encontrou sua sogra já com uma série de impropérios armazenados na ponta da língua, recriminando-o por ter deixado sua filha ir embora.      
- Mas eu não tenho culpa, pô! Se ela foi embora é porque não estava feliz comigo.
- É claro! A menina preferiu comer um bife do que a cachaça que tu toma de manhã, de tarde e de noite, ora! Mas eu não vou embora não. Eu aguento o teu bafo porque não tenho outro jeito. Tá bom, a senhora pode ficar. Vou aturar isso por pouco tempo, resmun-gou para si mesmo.
 Entrou em seu quarto e começou a procurar uma forma de amarrar a corda. Achou um gancho de rede há muito abandonado, mas que era a única opção. Amarrou a corda com um nó bem apertado e puxou para ver se estava firme. A corda arrebentou na sua mão, como se fosse um barbante. Naturalmente a corda tinha estabilidade na loja onde passara os últimos 20 anos e já estava na hora de se aposentar. Num esforço sobre-humano ele pensou em tomar formicida com a famosa caninha 51. Não iria cair num lugar co-mum e tomá-la com guaraná, como a maior parte dos suicidas. Isso não! Na hora da morte, principalmente, tinha que mostrar que era macho.
Foi à farmácia da esquina, onde era bastante co-nhecido, comprou um veneno e o levou para casa. O farmacêutico, ciente da tragédia que abalara a vida de João, lhe deu um pó adocicado e calmante, com a intenção de fazê-lo acordar dois dias depois e desistir da morte. Com o tempo, ele deveria esquecer a ingrata mulher que o abandonara.
João fez o mesmo ritual: entrou para seu quarto, dessa vez não com a corda, mas com o copo e a garrafa de 51. Dessa vez não vou falhar. Acho até que é melhor beber primeiro a metade da garrafa pra não desperdiçar essa pinga tão gostosinha – falou em voz alta. Separou a metade numa caneca grande e depois de misturar o pó no restante, bebeu um gole, dois, três, a caneca toda e caiu adormecido, sem tomar o “veneno”.
Gay, o cachorro que vivia com ele há muitos anos, apesar de se sentir humilhado com o nome que João lhe dera, chegou sorrateiramente e lambeu um pouco do pó que havia caído no chão. Em alguns minutos estava dormindo como seu dono e dormiram dois dias seguidos. Ele pelo pó calmante e seu dono pela cacha-ça.
João, ao acordar do porre, assustado com o ocorrido, levou Gay ao veterinário, tão logo conseguiu se por de pé. Gay estava caído, com os olhos revirados e o corpo pesado, como se não tivesse mais ossos, somente carne. Quando João soube que o animal havia comido o pó, pensou: imagina se eu não morro e fico desse jeito, com tudo mole assim? Deus me livre, nem pensar! Isso seria pior do que a morte! Vou arranjar outro jeito. Se eu tivesse dinheiro eu ia pros Estados Unidos, subia naquele edifício mais alto e me jogava lá de cima. Se eu não morresse da queda morria de fome no caminho, era o que ia acontecer. Mas duro do jeito que eu ando só posso me jogar mesmo é da janela do meu quarto. Aí foi que viu que essa ideia também não era das melhores, já que seu apartamento era térreo. Meu Deus do céu! Pra pobre, até morrer é complicado, pensou. Vou pegar a barca Rio-Niterói e no meio do caminho eu me jogo. É um meio melhor, não custa caro e ainda proporciono uma história pro povo contar quando chegar em casa. Tomou um ônibus, chegou à Praça XV e já ia comprar a passagem quando Ariovaldo, um amigo de infância, bateu no seu ombro. Amigo velho, há quanto tempo! O que é que tu anda fazendo por aqui? Estou indo a Niterói resolver um assunto. Eu também, vamos juntos então. No caminho Ariovaldo começou a contar as últimas novidades de sua vida. Quase todas ruins, como costuma ser na vida dos pobres, mas uma coisa boa lhe tinha acontecido. Sua mulher havia ido embora.
- E você acha isso bom, companheiro? Eu estou sofrendo justamente porque a minha se mandou com o açougueiro e você está feliz exatamente por isso?
-  Meu amigo, no primeiro momento eu também fiquei como tu, mas depois comecei a ver que a vida de solteiro é muito mais interessante. Eu tô saindo com um monte de gatas e não tô me amolando mais com cara amassada de manhã, papelotes à noite, cara cheia de creme e essas coisas que mulher gosta. Tô livre como um pássaro.
- Cara, você me convenceu de que a vida vale a pena. Eu estava tomando essa barca exatamente para me matar e você me salvou. Te devo uma. Vamos tomar um trago. Beberam até o amanhecer e, ao voltar para casa, nesse estado precário, João foi atropelado. 
Era destino, com certeza. Ele pediu, não pediu?
edina bravo
Enviado por edina bravo em 08/02/2011
Reeditado em 06/02/2014
Código do texto: T2779575
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